Apesar de já estar com um pé na Faculdade quando Digimon surgiu, admito que a série de animação me conquistou quase de imediato, levando-me a ignorar qualquer preconceito com o que tantos apelidam de “conteúdo para crianças”. O meu bigode e pêra de volume consideráveis que enverguei desde os 14 anos permitia-me sentir-me adulto e ao mesmo tempo continuar afastar a vergonha que tantos adolescentes desenvolviam por ainda verem séries de animação. E desde então uma frequente pergunta me é dirigida: “preferes Digimon ou Pokémon”. A resposta, tácita, é a mesma há vinte anos. “Depende”, costumo responder, “em animação e world building Digimon, em videojogos Pokémon, de forma indiscutível“. Comprei todos os Digimon World de PS1, e à época acabei por oferecê-los a todos aos meus primos mais novos (exceptuando o jogo de cartas dessa geração que ainda hoje adoro). O game design dos jogos de Digimon esteve sempre atrás dos de Pokémon: por um lado sem conseguir competir com a simplicidade e apelo deste, por outro a ficar num limbo de escolhas mecânicas duvidosas que não sabiam a que público apelar.
Se as séries de anime de Digimon foram progressivamente mostrando-se estimulantes com os seus arcos narrativos, superiores à abordagem mais superficial e pueril da de Pokémon num formato monster of the week, só há poucos anos, com o lançamento de Digimon Story: Cyber Sleuth, é que a franquia criada pela Bandai (para mim) ultrapassou a sua rival na esfera dos videojogos. Com um enredo extremamente bem escrito, maduro, associado a mecânicas de combate e coleccionismo que se alicerça nos jogos de Pokémon e os repensa, longe dos padrões formulaicos do género.
Sendo os últimos dois jogos a chegarem às nossas mãos dois exemplos da imensa qualidade que o spinoff Digimon Story nos mostrou, diria que a si se deveu parte da extrema antecipação que Digimon Survive gerou.
Muitos fãs criaram um castelo de cartas de expectativas em relação ao jogo – algo que os sucessivos adiamentos serviram apenas para alimentar – sem saberem na realidade que Digimon Survive não seria certamente o título ou o género que esperavam. Uma visual novel cruzada com tactical RPG, onde o primeiro género assume um papel preponderante.
Não sendo dos géneros que mais jogo, é curioso que tenha a série que me apresentou ao género das visual novels – Ace Attorney – como uma das minhas favoritas do mundo dos videojogos. Somem-se a ela outras séries de visual novels como Danganrompa e muitas outras que a NIS America tem trazido para o Ocidente, e é fácil percebermos que o elemento principal deste género é a escrita.
E é precisamente aqui que Digimon Survive tropeça: uma visual novel depende muito da sua qualidade narrativa e a capacidade de nos manter interessados ao longo das dezenas de horas que um jogo do género costuma demorar. Mas neste caso os problemas rítmico-narrativos são demasiado evidentes para os conseguirmos ignorar, e a grande maioria dos capítulos desenrola-se em círculos concêntricos, com ligeiros avanços inconsequentes. Temos a hipótese de ir desenvolvendo afinidades mediante as respostas que damos às encruzilhadas de diálogo, mas estas só contribuem para a inconsequência geral do jogo.
A repetição de alguns elementos de enredo e a incapacidade dos personagens de resolverem os problemas com que se deparam e fazerem avançar a trama, leva-nos a um verdadeiro exercício de esforço para suportar a lentidão e superficialidade narrativa. O elenco, em termos dos personagens humanos, segue uma linha de clichés com o grupo de protagonistas da série original mas sem o mesmo carisma, e acabamos por não criar empatia com eles – facto que os problemas de ritmo narrativo acabam por exacerbar. Os Digimon são sobretudo metáforas das personalidades dos seus companheiros humanos, mas esta figura de estilo é tão abruptamente demonstrada que se perde na tradução emocional.
Digimon Survive é uma visual novel com problemas de identidade, que tenta distrair-nos desses mesmos erros com os limitados momentos de tactical RPG, sendo que estes, infelizmente, nada trazem para além da fórmula já tantas vezes testada. A proporção de combates em relação aos momentos arrastados de narrativa é bastante desequilibrada, e só vem acentuar os problemas de escrita.
Apesar dos erros e frustrações que o enredo cheio de clichés de Digimon Survive nos traz, há algum regozijo em mim de ver a Bandai dar espaço para que estúdios tentem algo de diferente com o universo de Digimon. Apesar do resultado ter ficado aquém do que se esperaria, há aqui uma clara intenção de testar as águas e perceber quais as áreas que não entrem em conflito directo com o grande rival Pokémon. Mas é difícil de sugerir Digimon Survive como compra dada a sua fraca qualidade de escrita, principalmente por sabermos através das séries e dos filmes que é possível pegar neste interessante universo e fazer algo de verdadeiramente marcante com ele.