Se quando pensamos em Pokémon o calendário de lançamentos – quer de novos títulos, quer de remakes de anteriores – tem sido previsível, a história recente de Fire Emblem não nos dá a mesma margem de antecipação. Após o sucesso na chegada ao Ocidente via GameBoy Advance, a transição para GameCube e Wii não correspondeu nas vendas e a Intelligent Systems achou que um remake do primeiro jogo, Shadow Dragon, traria a franquia de volta às boas graças do público.

Pois, não trouxe.

Dois anos depois, New Mystery of the Emblem trouxe um remake (de uma parte) do terceiro jogo da saga, mas voltou a ficar-se por terras nipónicas como nos anos 1990.

E também não correu lindamente.

Com o ressurgimento da popularidade de Fire Emblem em 2012 com Awakening na 3DS para níveis sem precedentes, a continuidade do sucesso visto depois em 2015 com Fates levou a Intelligent Systems a voltar-se de novo para os remakes, com Echoes: Shadows of Valentia a ser moderadamente bem sucedido, naquele que era possivelmente o jogo exclusivo do Japão com maior necessidade de actualização. Como se viu pelo sucesso de Three Houses, já na Switch, o fulgor da saga manteve-se e até se expandiu para o mobile (FE Heroes), dois spin-offs de Warriors e um crossover com Shin Megami Tensei.

O jogo que vos trago hoje é um dos três que restam na saga nunca antes localizados fora do Japão – Fire Emblem: Geneaology of the Holy War, lançado para a SNES em 1996. Uma pérola mantida viva pela comunidade ocidental (que no ano passado completou o seu 25º aniversário) enquanto a Nintendo não anuncia o há muito ansiado remake.

Sigurd, o protagonista da primeira geração do jogo.

O MAIS AMBICIOSO DE TODOS OS FIRE EMBLEM

Qualquer um dos jogos lançados no Ocidente teve um significativo desafio para a Intelligent Systems: Fire Emblem Blazing Blade (2003) foi o primeiro a sair fora do Japão, Path of Radiance (2005) a tentativa de legitimar a franquia nas consolas domésticas modernas, Awakening (2012) o all-in para salvar a o estúdio e Fates (2015), essa quimera que era ao mesmo tempo três jogos e um só. Mas depois de ter passado 69 horas com Geneaology of the Holy War (doravante referenciado como FE4 que ninguém tem paciência para tantos caracteres) não tenho dúvidas que o produto mais bem sonhado por Shouzou Kaga foi mesmo este.

Todos os pedaços de design de FE4 estão onde estão de forma a contribuírem para contar uma história de proporções épicas. Se a maioria dos Fire Emblem tem umas boas dezenas de mapas, em que cada um nos leva 15 a 40 minutos a completar, FE4 tem apenas 12 mapas. Só que são 12 mapas gigantescos, cada um com dois a cinco castelos para conquistar com o nosso protagonista (o que acaba por equivaler mais ou menos ao número de capítulos habitual quando visto assim), ao longo de duas a quatro horas. Há alguns diálogos a progredir o enredo de densa trama política, mas de resto passamos a maior parte do nosso tempo de castelo em castelo. O tempo que precisamos para percorrer todo um mapa – especialmente sem unidades a cavalo, mas já lá vamos – é imenso, mas a imersão no continente de Jugdral também. Os mapas até encaixam uns nos outros, sendo assim possível percorrer todo o continente de forma jogável, em vez de termos uma amostra de locais mais emblemáticos como na maioria dos mapas de outros jogos da saga, só por vezes elencados com um mapa-mundo que nos dá uma sensação de escala.

O mapa de Jugdral…

Se no campo da jogabilidade é o mapa que nos transporta para o conflito épico, a narrativa de FE4 acompanha a escala com um nível de seriedade e cuidado que nos faz esquecer que estávamos em 1996. Sigurd, descendente de um dos 12 lendários cruzados que venceram a Guerra Santa face ao deus negro Loptous, é instado a travar uma aparentemente inocente invasão de um reino bárbaro vizinho, numa empreitada que o leva a descobrir uma conspiração contra o continente inteiro. Encontramos inimigos e aliados em todos os reinos de Jugdral ao longo de quatro anos de conflito e levamos com um dos melhores plot twists da minha carreira de jogador – infelizmente a Internet encarregou-se de me estragar a surpresa antes de jogar – sensivelmente a meio do jogo. Após bastantes anos, encaminhamos uma segunda geração de heróis na segunda metade de FE4, que têm de lidar com as consequências de tudo aquilo que aconteceu à geração anterior. É certo que a história termina num tom mais apaziguador do que gostaria, mas a viagem até lá vale bastante a pena. Ah, e tem algum incesto pelo meio, à boa moda dos Maias. Que com jeitinho tem reflexos na jogabilidade, se quiserem ir por aí.

…e o mesmo mapa em versão gameplay.

O MAIS INSPIRADOR DE TODOS OS FIRE EMBLEM

Se em 2022 já existem mais Fire Emblem sem o mítico criador Shouzou Kaga do que com, a verdade é que foi no quarto que se notam os maiores laivos de genialidade do game designer japonês, com ramificações em todos os jogos da série desde então. Foi a primeira vez que existiu um triângulo de forças e fraquezas entre armas e magias na saga. Foi a primeira vez que os personagens ganharam habilidades especiais que os diferenciavam além da sua classe. E foi a primeira vez que pudemos envolver personagens romanticamente e fazer algum planeamento familiar para personagens jogáveis mais à frente.

Há uma grande familiaridade dentro da saga Fire Emblem desde o primeiro título: continuamos a pegar num diminuto exército, num mapa de quadrículas, munidos de armas mais ou menos perecíveis e temos de dar cabo dos maus, sendo que os personagens que morrem não voltam ao jogo. Perceber finalmente de onde vieram elementos que – à exceção da mística pais-filhos apenas dos jogos da 3DS – raramente saíram da equação foi como descobrir uma relíquia de família.

A complexidade com que Kaga planeou as diferentes possibilidades de hereditariedade – de itens, estatísticas de combate, habilidades e até da linhagem dos 12 cruzados das lendas – num jogo de SNES em 1996 ainda hoje é impressionante. Se não casarmos alguma das personagens femininas da primeira geração (são as mães que definem os filhos aqui), o jogo encarrega-se de nos dar um personagem diferente na segunda – normalmente da mesma classe, mas ligeiramente menos habilidoso, que tem uma história pessoal completamente diferente. Kaga enriqueceu a narrativa imaginando dois ou três cenários de casamentos mais canónicos (num cenário o Zé casou com a Maria, o Manel com a Cristina e o Álvaro com a Celeste, noutro o Zé com a Celeste, o Manel com a Maria e o Álvaro com a Cristina, etc.), mas mesmo fora deles o epílogo de cada personagem está detalhadamente escrito para todas as suas possibilidades, de forma muito natural em vez do típico narrador que nos traz duas linhas sobre cada romance.

Pese a sua saída contenciosa da Intelligent Systems depois do fiasco comercial da sequela de FE4, Thracia 776, o legado de Kaga perdura no estúdio japonês. Até um dos castelos no jogo, Tirnarog, símbolo do renascimento dos heróis de Jugdral, teve de acabar por ser o nome do estúdio que Kaga fundou após sair da Intelligent Systems – já que a Nintendo não o deixou usar o lore de Archanea nos seus jogos.

Juro que não foi de propósito para ser ordinário.

O MAIS UM DOS MAIS TEIMOSOS FIRE EMBLEM QUE PRECISA DE UM REMAKE

Claro que não há jogo de Kaga sem teimosias que nem sempre favorecem o produto final. Como sou Kagaeísta prefiro o termo idiossincrasia, mas vai dar ao mesmo já que estas são óbvias em FE4.

Já vos escrevi sobre os mapas serem grandes e em como isso contribui para a escala épica da narrativa. No mesmo parágrafo prometi-vos voltar ao tema pois FE4 é o mais tendencioso em favor de personagens a cavalo face aos que andam a pé, mesmo que estes últimos até tenham melhores stats no geral. Se a cavalo um personagem percorre 8 ou 9 quadrados a direito, a pé esse número é de 5 ou 6. Noutros jogos da série, os mapas variam entre 20×20 e 30×30, em FE4 a média é 64×64 – faz muita, muita diferença. Sem uma mecânica de transporte de personagens mais lentas ou alguma forma de mitigar o seu curto movimento, sem dúvida as partes que menos gostei de jogar envolviam levar estes personagens de castelo em castelo, com a alternativa a ser não os usar e desenvolver de todo, com turnos intermináveis de walking simulator.

Ah, valentes cavaleiros!

Há também a questão dos recursos finitos, que normalmente traz uma dose agradável de estratégia a Fire Emblem. Em FE4 estes traduzem-se em o dinheiro não ser de todo o exército, mas de cada personagem, sem ser possível transferi-lo salvo para um esposo(a) ou de um Thief. Até há muitas aldeias e combates de arena (em FE4 sem penalização de morte em caso de derrota) para acumular divisa, mas tudo piora quando percebemos que também o inventário é de cada personagem e não de todo o exército, o que faz com que cada vez que queremos trocar o item entre personagens o detentor tem de o vender à loja de penhores, para o personagem a quem queremos dar o item o deva ir comprar ao dobro do preço. No caso dos anéis que aumentam stats, estes são bastante caros.

É por coisas destas que precisamos de um remake de Geneaology of the Holy War. Porque podem ser corrigidas ou reequilibradas como certos defeitos de Fire Emblem: Gaiden o foram para Echoes: Shadows of Valentia. Porque uma história sem muita da patetice de anime ou alguns tropeções preguiçosos de quem escreve merece lugar de destaque no século XXI. Porque há todo um grupo de fãs que nos trouxeram o Project Naga, uma tradução de alta qualidade que me deixaria convencido de que o jogo saiu no Ocidente. Porque o potencial épico com cutscenes e voice acting modernos traria nova luz à narrativa e aos personagens.

E porque a Nintendo faria imenso dinheiro.