É impossível falar em TemTem sem fazer os devidos paralelismos com Pokémon. Provavelmente já leram e ouviram sobre dúzias de clones e sucessores espirituais – até uns falsos por meio de anúncios nas redes sociais – da lucrativa série da Game Freak. Em 2020 o Ricardo escreveu sobre Nexomon, ainda este ano eu sobre Coromon. O que é que nos faz continuar a tentar encontrar o el dorado que a série já foi, como membros residentes do clube das pre-orders de cada novo título que continuamos a desprezar, enquanto nos engasgamos em enchidos ao mesmo tempo que nos caem as lágrimas do desespero pelo rosto abaixo?
(era retórico, na melhor das hipóteses algum(a) terapeuta terá condições para responder)
Uma coisa ninguém pode tirar a TemTem: é o único clone que alguma vez tentou competir com Pokémon, lançado em Early Access em 2020 e agora na sua versão 1.0 em Setembro. Único porque consegue ser tão inspirado na franquia da Nintendo como tão inovador mecanicamente, sem partir com um avanço de popularidade como, por exemplo, Yo-Kai Watch teve durante uns tempos.
Sem vergonha, TemTem piscou-me o olho pelas semelhanças com Pokémon, ao explorar o marasmo de anos recentes da Pokémon Company como amouse-bouche para me abrir o apetite a experimentar algo diferente – e com o 1.0 lançado numa janela que me parece estrategicamente perto da estreia de Pokémon Scarlet e Violet. Somos um(@) jovem que prefere fazer recados a um professor do que a ir à escola; levamos um de três TemTems do professor para realizar esses recados; levamos os TemTems para combate enquanto tentamos conquistar todos os Dojos deste universo; procuramos capturar todos os TemTems conhecidos; há uma organização criminosa que nos está sempre a atrapalhar os planos.
E está tudo bem, amigas. Raramente vi alguém queixar-se de Pokémon por algum destes pontos – mesmo as narrativas risíveis do Team Rocket.
Por detrás da estética colorida em cel shading, porém, TemTem agarrou-me pela destreza como soube implementar, não necessariamente melhorias, que isso é subjectivo, mas “diferenças” como melhor descreveu o director do jogo. Os três TemTems por onde escolhemos nada têm a ver com Erva, Fogo ou Água; o combate é quase sempre em dois contra dois, com muita preponderância de ataques que convidam à estratégia no emparelhamento para efeitos adicionais; os ataques não têm valor de pontaria, pelo que acertam sempre salvo alguma habilidade, nem de pontos de uso, pelo que usam uma espécie de MP do TemTem; há bastantes sidequests; é possível os TemTems porem ovos, mas a reprodução de cada um é limitada (adeus, Dittos-de-aluguer).
Ah, e TemTem é um MMO.
(…)
Deixem a ideia assentar.
(…)
Já está?
(…)
Pronto. Continuo a não adorar ver um ecrã repleto de gente sobreposta. Não é tão mau como o horror das multidões de FFXIV, eu que não gosto disso em jogos ou na vida real. Mas funciona, e há já algum tempo que defendo ser este o caminho para Pokémon, num repositório infindável de todo o seu conteúdo histórico enquanto novos títulos indepentendes poderiam surgir com mais liberdade paralelamente. TemTem usa o que de melhor têm os MMOs em termos de sociabilidade – aspectos cosméticos, habitação, eventos temporários, por aí fora – que nada comprometem uma experiência single player.
TemTem é um bocado como aquela miúda gira que faz o nosso estilo e vimos na noite (ou numa app) e pensamos “olha que bem“. Ela até trocou uns olhares connosco (ou fez match) e começámos a conversar. É nesse momento em que percebemos que ela é bastante interessante, fala de coisas que nos movem e tem dois dedos de testa. E o que pensávamos que ia ser uma noite bem passada transforma-se em imaginarmos como seria ter filhos com aquela pessoa.
Torna-se aquela agradável surpresa que é mesmo, mesmo boa. Andar pelos mapas em busca de TemTems, fazê-los crescer. O combate então – pese criar uma experiência bem mais desafiante do que estamos habituados – é onde os espanhóis da Crema se esmeraram, justificando todo um post-game com fortes bases competitivas. Narrativamente nem senti que foram dados passos assim tão largos em direcção a um público menos infantil, mas há sarcasmo que chegue para se perceber que este é um jogo para fãs ou ex-fãs de Pokémon e não tanto para principiantes. Nas seis ilhas do Airborne Archipelago, os cenários são deliciosos e a temática dos TemTems que as habita e as pessoas que com eles combate está perfeitamente integrada no lore da região. Cada cantinho dá gosto de explorar.
Há, claro, muita coisa que podia ser melhor – e nem todas têm a ver com orçamento limitado. Quer pela vasta dimensão dos mapas, pela dificuldade acrescida do combate ou pela escassez de items entre pontos seguros, a experiência entre cidades é bem mais longa do que estamos habituados. O que, se não tivermos maneira de fugir aos encontros de TemTems selvagens (demoramos algumas horas a ter acesso à possibilidade), torna-se algo frustrante (bem como a falta de capacidade da nossa enciclopédia de pesquisar habitats conhecidos de TemTems). Aqui é uma questão de game design, com as vantagens que isso teve com os exemplos enumerados antes.
Onde o projecto terá esbarrado em orçamento limitado ou complexidade, foi no número de criaturas disponíveis: em teoria, tem mais ou menos tantos quanto tinha o primeiro jogo de Pokémon, o que lhe faz justiça. Acontece que com um mapa tão vasto, a falta de diversidade da fauna começa-se a notar logo na primeira das seis ilhas (e continua), tanto na natureza como na dos nossos adversários. Estava sempre a esbarrar nos mesmos TemTems, o que na minha metáfora anterior seria aquela jovem interessante começar-me a aborrecer passados alguns meses de relação. E aqui pedia-se mais diversidade, ainda que em patches subsequentes do jogo, para apimentar essa relação.
Ora, dos 70 mil dólares estabelecidos como objectivo inicial, a campanha de Kickstarter de TemTem passou a fasquia dos 500 mil e aproxima-se dos 600 mil. A Crema, com umas 30 e poucas pessoas, só precisava do dinheiro para complementar o orçamento que tinha inicialmente, e ultrapassou-o em larga escala. Mas os developers já vieram confirmar de que não há planos para adicionar mais criaturas ao jogo, o que deixa este riquíssimo mundo um pouco despido de bio-diversidade. Sendo um MMO, não me faz sentido que queira ter uma longevidade de apenas 2-3 anos como experiência single player (pese o ótimo aspecto competitivo que a comunidade tem apoiado), pelo que estender o jogo a mais criaturas pareceria o mais lógico, ao invés de, quem sabe, apostar num TemTem 2.
O que me parece é que a Crema atingiu um tremendo sucesso e seria uma pena desperdiçar-lhe o potencial. Não sei o que é que a Baiana tem, mas TemTem ainda não tem tudo para destronar Pokémon no género que este criou. Já mostrou que boas ideias assentes num plano realista podem morder os calos aos gigantes da Game Freak – fazer estes, pelo menos, ouvir a comunidade e inovar mais (há uma pessoa do estúdio espanhol apenas dedicada a recolher feedback deste o início do projecto) – e criar verdadeira competição contra o marasmo.
Aquilo que, neste momento, Pokémon tem que TemTem-NãoTem são quase 30 anos de pedigree, criaturas, mecânicas e fãs devotos que vão fazendo da franquia a mais lucrativa de sempre do ramo do entretenimento – esqueçam lá Star Wars, Marvel, Harry Potter ou os próprios Mario e Mickey – sem sinais de abrandamento. O que tem? O mérito de não esconder onde estão as suas origens enquanto faz algo que não parece uma cópia deslavada da sua inspiração, com méritos próprios.