Seja em 2013, quando The Last Of Us saiu para a PlayStation 3, ou agora, com a adaptação para televisão pela HBO, o título impõe-se enquanto uma entidade viva que coloca o pé no chão com firmeza para se afastar da ideia “isto cheira a zombies”. Percebe-se a tentação, os vírus, as distopias, o excesso pós-apocalíptico ilude a pensar que existe no mesmo domínio enquanto variação. O título afirma uma ideia de derrota da Humanidade. Perdeu-se para a natureza, a esperança respira na sobrevivência, uma outra ideia, ou realidade, de mundo venceu. Por alguma razão, The World Without Us, o livro de 2007 de Alan Weisman, inspirou a idealização daquelas cidades sem nós. Fica subjacente que, enquanto espécie, temos os dias contados.

Este vinco da derrota diferencia o jogo, e agora a série, de tudo o resto. Sem um futuro comum para lutar, sobram as histórias dos que ainda aqui estão. Por mais surpresa que tenha causado o final de The Last Of Us em 2013, ele era o único final possível: a expressão máxima do abandono de uma ideia de futuro para segurar a única coisa valiosa do presente, o nós, os que ainda aqui estão. O modelo funcionou no videojogo porque, para todos os efeitos, a decisão, mesmo que ilusória, passa pelas mãos do jogador. Numa série de televisão abdica-se desse tipo de falso controlo, uma história como a de The Last Of Us, por mais que aluda a outras formas de média/entretenimento e se construa sobre elas, poderia não funcionar noutro modelo.

Depois de ver o primeiro episódio, resolvi ir jogar o início do jogo. Havia um recuperar de sensações, algo era familiar. O exercício não era de comparação e, sim, de perceber o que mudou e o que ficou para justificar essa mesma sensação. A caracterização das personagens acontece nos mesmos moldes, sobretudo a de Joel (Pedro Pascal), segurando os pilares da personalidade em 3 ou 4 diálogos, suficiente para entender a personagem daí para a frente. Há um quotidiano que se impõe na série e uma espetacularidade na apresentação das primeiras horas daquele novo mundo para compensar a ausência do jogador. O início é mais frenético, explosivo, mas serve para substituir a ausência de controlo e compensar de outra forma. Daí a familiaridade. A nível de sensações, de impacto, de arrepios, são semelhantes.

The Last Of Us, a série, apresenta-se com um início de espectáculo para vincar intenções: vai ser diferente do jogo, vai ser o mesmo do jogo. Comece-se pelo mesmo, no subconsciente de Craig Mazin e Neil Druckmann, está aqui uma oportunidade para corrigir os erros de três décadas de – a maioria – más adaptações de videojogos para cinema e televisão. Seja pela mania de justificar um medium no outro ou por não se encontrarem histórias/argumentos que funcionem num média passivo. The Last Of Us, o jogo, inspirou-se muito na forma como Hollywood conta histórias – tal como Uncharted já o tinha feito – e, por isso, no esqueleto, é próximo do medium para o qual agora é convertido.

No entanto, tudo isto é diferente. Persiste, ao longo dos nove episódios desta temporada, uma vontade de centrar no que ficou neste mundo que, é muito frequente, pensar que não há muitos perigos no universo de The Last Of Us. Um mundo vivo, que acontece e aconteceu e que se conta ao sabor da necessidade das histórias. O terceiro episódio pega num detalhe para contar a história de Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Barlett) e em nenhum momento se questiona porque é que a série se está a desviar do núcleo, tão cedo: o início do episódio é tão desembaraçado de explicações, que o espectador entra, perde-se e não mais quer sair dali. No final do episódio, quando se percebe a ligação daquelas personagens a Joel, a resposta vira detalhe insignificante. O que acabou de se ver foi tão bom que até podia abdicar de qualquer ligação (mas a televisão não funciona assim).

A existência deste terceiro episódio – um dos melhores que se verão na televisão em 2023 – torna a experiência de The Last Of Us subliminar. Quem conhece o jogo, sabe que não se trata de um jogo de zombies, quem não conhece e pensava que era mais uma série pós-apocalíptica, vê todos os preconceitos a serem destruídos ali. Haverá mais momentos assim ao longo da temporada, nenhum tão dedicado como este. E repetem-se acontecimentos sagrados: o da graduação de Ellie (Bella Ramsay) para personagem realizada. Com uma diferença, não é o jogador a controlar a sua sobrevivência, mas a câmara a ditar a transformação. Tudo acontece sem o dever de checklist, como tem de ser nas melhores adaptações. Valeu a pena esperar três décadas por algo assim.