Sem ter noção de que o estava a fazer, desde criança que de uma outra forma fui encontrando formas de gerir o meu Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Uma das formas mais recentes que encontrei é o acto de sleevar e organizar jogos de tabuleiro, especialmente jogos de cartas. Nunca fui um aficionado por jogos de cartas tradicionais, nem tive orçamento disponível para me aventurar em trading card games, mas nos últimos 12 anos a minha atenção e o meu investimento em jogos de tabuleiro tem sido sobretudo com jogos de cartas. E cada vez que tenho dezenas ou centenas (ou milhares, como aconteceu com o Thunderstone Quest) de cartas para colocar sleeves, é altura de pôr uma série a dar no iPad, sentar-me à mesa, e divertir-me.
Transpor esta paixão pelos jogos de cartas – que não é apenas terapêutica – para os videojogos foi algo natural, e é habitual dar por mim a escavar o Steam e o meu Play Pass no telemóvel à procura de novos jogos para testar.
Inscryption saiu em 2021, pela mão do genial Daniel Mullins – que se notabilizou pela igualmente genial experiência que é Pony Island – e basta a ideia de um jogo de cartas criado pelo histórico developer canadiano para a minha atenção ter ficado de imediato no máximo. Mas a vida aconteceu, as centenas de jogos que vão chegando, os podcasts, o Indie X, pelo meio, e por alguma razão a oportunidade e o espaço mental para mergulhar em Inscryption tardou em chegar. Foi necessária a chegada à Switch, no final do ano passado, para eu me poder aventurar em mais uma experiência única, tal como Mullins já nos habituou.
Inscryption é um deckbuilder, mas é tão mais que isso. Conseguir equilibrar um jogo de cartas simples, com elementos de roguelike, e ao mesmo tempo envolvê-lo num jogo de terror com elementos de puzzles retirados de escape rooms não é para todos. As cartas são, até, um jogo dentro do jogo. Sendo que o jogo principal é a linha misteriosa entre a vida e a morte, centrados na tensão dos olhos misteriosos que nos observam na escuridão, e que nos comandam a jogar o jogo de cartas onde a nossa vida está, realmente, por um fio.
Sacrifício é o tema recorrente em Inscryption e a mecânica principal o jogo de cartas. Cada carta representa uma criatura, e a maioria requer um sacrifício de sangue ou de ossos para ser jogada em campo. A elegância mecânica que Mullins inscreveu em todo o jogo de cartas é brilhante: rapidamente aprendemos as mecânicas e a forma faseada como nos são ensinados os símbolos com mecânicas novas nas cartas permite-nos ir complexificando a jogabilidade à medida que vamos avançando nos capítulos.
Apesar de estarmos reféns naquela casa, sempre com os olhos do misterioso e aterrorizador The Game Master a seguirem-nos, seria injusto contrariar o que ele nos diz, que no fundo ele até nos está a dar uma hipótese de sucedermos. Em cada playthrough o The Game Master acende-nos duas velas, que representam as duas vidas que temos para conseguir explorar todos os capítulos e derrotar todos os bosses. No entanto, para aumentar a dificuldade, no início de cada boss fight o nosso captor/interlocutor apaga uma das velas, obrigando-nos a passar o desafio com apenas uma vida.
As boss fights, para além de adicionarem elementos e desafios mecânicos diferentes das restantes etapas são o único momento em que o rosto do The Game Master se afasta das sombras. Mas ele fá-lo colocando uma máscara do boss/personagem que estamos a enfrentar, dando um rosto ao papel que está a interpretar.
Algumas das cartas que vamos encontrando nos puzzles da sala – mais sobre isto um pouco mais à frente – são os únicos interlocutores que temos para além do nosso inimigo. São eles que vão revelando um pouco sobre o mistério que nos mantém ali, morte após morte, e que vão indicando, em momentos específicos do jogo, pequenas dicas de como resolvermos os puzzles que decoram as paredes da cabana onde estamos fechados.
Como disse no início, Inscryption tem diversas camadas, e o jogo de cartas é apenas um. Mullins encarou de forma directa a ideia de que estamos a jogar às cartas na primeira pessoa, dando-nos a possibilidade de, entre partidas, nos afastarmos da mesa e de explorarmos o reduzido espaço da cabana.
Nas paredes existem alguns puzzles, muitos deles utilizam apenas a iconografia das cartas, obrigando-nos a avançar no jogo para conhecermos as suas mecânicas e efeito, para que consigamos resolver as situações de disposição das cartas no tabuleiro, tal como exigidas.
Este cruzamento de escape room, do qual vamos progressivamente recebendo indicações e formas de desbloquear cofres e armários, de onde retiramos novas cartas.
A aura de terror que Mullins criou neste Inscryption não é algo que nos irá tirar o sono, mas, acompanhado pela música sombria, são decerto elementos que contribuem para a aura mais negra do jogo, alimentando o mistério que nos vemos envolvidos, na primeira pessoa, com aqueles olhos aterrorizadores que nos perfuram para onde quer que vamos.
Inscryption volta a mostrar o virtuosismo criativo de Daniel Mullins ao pegar em elementos habituais de alguns géneros e elevá-los para um experimentalismo que lhes confere uma substância mais complexa. A ideia de misturar um jogo de terror com um deckbuilder e um escape room é, sem dúvida, inédito. Mas é o resultado final, a linha narrativa e o mistério que se vai lentamente revelando à medida que avançamos no jogo, que torna este jogo verdadeiramente obrigatório. E se dúvidas existissem que o criador canadiano é um dos mais interessantes que a indústria de videojogos conta activamente nos nossos dias, então Inscryption só serviu para o evidenciar.