As últimas semanas têm sido conturbadas no mundo dos jogos narrativos. Tudo começou quando veio a público uma fuga de informação referente a uma nova OGL (Open Game License) que viria a substituir a existente. A OGL é, essencialmente, o documento que permite a criadores independentes não filiados à Wizards of the Coast, desde outras empresas a bloggers e youtubers, a produzir conteúdo referente a Dungeons & Dragons sem quaisquer represálias legais. Pois bem, a nova OGL pretende mudar isso ao mesmo tempo que roda o manípulo para 11. Sob esta nova OGL que, por escrito, revoga a anterior, os criadores de conteúdo já referidos têm que a assinar caso queiram produzir conteúdo relacionado com Dungeons & Dragons. Para além disto têm também que declarar o que estão a criar, por onde é que querem vender, por quanto é que o pretendem fazer, dando também uma percentagem de lucro à Wizards of the Coast dependendo do capital que detêm/produzem. A agravar a situação, o conteúdo criado passa a pertencer perpetuamente à Wizards of the Coast, podendo ser editado e comercializado por esta conforme pretender, podendo inclusive rescindir contrato com o criador original, como e quando quiser, bastando para tal enviar uma notificação com uma antecedência de 30 dias.

A divulgação desta fuga iniciou uma pequena onda de revolta na comunidade que rapidamente cresceu. Empresas como a Paizo e a Kobold Press anunciaram desvincular-se do sistema de Dungeons & Dragons ao mesmo tempo que começam os preparativos para criar as suas próprias versões da OGL para que outros criadores independentes possam usar os seus sistemas de jogo nas suas criações. Entretanto, vários Mestres de Jogo e jogadores cancelaram as suas subscrições da plataforma D&D Beyond, declarando que não tencionam comprar mais produtos da Wizards of the Coast, rumando, inclusive, para outros jogos como Pathfinder (dentro do mesmo tema de Dungeons & Dragons).

Durante dias de silêncio absoluto por parte da Wizards of the Coast, várias eram as especulações que surgiam na comunidade, ao mesmo tempo que criadores de conteúdo de vários ramos (artistas, game designers, advogados, etc.) colocavam questões particularmente pertinentes: será que a Disney e a Blizzard estarão dispostos a deixar que a Wizards of the Coast se aproprie livremente de Star Wars – Knights of the Old Republic e WarCraft 3 por conterem regras de Dungeons & Dragons? Poderão regras e mecânicas de jogo ser alvo de protecção de direitos de autor? Poderá a Wizards of the Coast processar outros por isto? O que é certo é que, para o melhor e para o pior, a Wizards of the Coast acabou por responder.

Num documento de aparentes desculpas sinceras, repousam uma série de intenções duvidosas. Enquanto que declaram que uma das intenções da nova OGL passaria por garantir que ninguém produz conteúdo desconcertante para o jogo, sem nenhuma intenção para afectar grandes empresas, “caem no esquecimento” da apropriação total do conteúdo criado por outrem, bem como o pagamento de dividendos. 

Perante a certeza de que ainda irá correr muita tinta, sabe-se também que, muito provavelmente, a Wizards of the Coast continuará a fazer dinheiro com Dungeons & Dragons. O novo filme vai estrear em Março e certamente que com ele virão novos grupos de pessoas desejosos por experimentar o jogo, e muito provavelmente estes grupos estarão não só alheios a toda esta polémica como também estarão mais interessados em jogar e nada mais. 

Dungeons & Dragons é e continuará a ser um jogo narrativo de referência por força do seu mediatismo na cultura pop, servindo de porta de entrada para muita gente. Um exemplo disto reside na controvérsia da quarta edição que levou à criação de Pathfinder, o que não impediu que se continuasse a jogar Dungeons & Dragons. Pode-se colocar no ar se a gravidade deste mais recente episódio irá mudar esta realidade, mas é provável que não. Mesmo que as receitas da Wizards of the Coast caiam significativamente, a comunidade continuará a ter ao seu alcance os manuais e módulos que têm vindo a adquirir ao longo dos anos. Cada grupo continuará a poder fazer as alterações que achar por bem de forma a que a experiência de jogo vá melhor ao encontro do que pretende.

Para além do suporte físico e presencial, a comunidade continuará a contar com vários VTTs que permitirão recriar a mesma experiência de jogo e contornar uma nova OGL que mantenha o mesmo tipo de restrições no que toca ao uso de regras e mecânicas.

A reputação da Wizards of the Coast está manchada, e é perfeitamente compreensível que os consumidores não caiam nas suas boas graças tão cedo… mas tal não será para sempre.

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Surgiram alterações muito recentemente (dia 18 de Janeiro) através de uma nova actualização, e uma que parece mais promissora. Nesta versão a Wizards of the Coast não só abdica da apropriação de conteúdo e do pagamento dos respectivos dividendos, mas também disponibiliza o próprio documento como um esboço editável. Para isso, tanto a comunidade como as várias editoras/produtoras podem pronunciar-se e contribuir para garantir que se mantém a premissa inicial de criar algo benéfico para todos.

Contudo, há uma série de reservas. Para já o documento não contabiliza nenhuma cláusula que estipule ser irrevogável nem um qualquer impedimento por parte da Wizards of the Coast de, a qualquer momento, fazer qualquer tipo de alterações que achar por bem. A isto acrescenta-se o facto de continuar vago o que pode ser entendido como conteúdo ofensivo ou discriminatório.

De qualquer das formas, a verdade é que, no meio e por força de todo o caos que surgiu nas várias redes sociais, a Wizards of the Coast/Hasbro deu o braço a torcer. O regime rígido de favorecimento unilateral deu lugar a uma discussão em que os interesses das várias partes são ponderados. Isto não muda o facto de várias produtoras estarem já a desenvolver a sua própria OGL para os seus sistemas de jogo, nem a quantidade de pessoas que abandonaram as subscrições do D&D Beyond; mas o facto de haver uma intenção de mudar dá um ar mais promissor a um cenário demasiado negro para o hobby… embora continue a ser importante estar-se atento ao que poderá surgir, bem como ler nas entrelinhas.