A Avalanche Software é um estúdio com quase 30 anos de experiência, a maioria ao serviço da Disney, onde fez inúmeras adaptações dos seus universos a videojogos. O seu projeto mais conhecido é Disney Infinite, um formato híbrido de brinquedos e videojogos, na linha do Skylanders. A Warner Bros. adquiriu o estúdio em 2017 e foram precisos seis anos para entregar o seu primeiro jogo, o ambicioso Hogwarts Legacy.
O estúdio recebeu dessa forma a herança de trazer para os videojogos todo o mundo de magia criado pela escritora J. K. Rowling, depois de durante anos a Electronic Arts ter explorado as adaptações dos filmes homônimos. Duas impressões iniciais que salientaram Hogwarts Legacy: o primeiro é que não se tratava de mais um jogo baseado em Harry Potter, mas sim uma prequela com muitos anos de separação. O segundo é que se tratava de um RPG baseado em mundo aberto onde o protagonismo recaia mais sobre o famoso castelo e o mundo mágico em redor, do que propriamente a personagens ligadas ao franchising.
O mundo mágico criado por J.K. Rowling é rico o suficiente para se contarem outras histórias, sem perder a identidade que os fãs tão bem conhecem. Veja-se como a série de filmes Fantastic Beasts and Where to Find Them consegue manter o ambiente mágico, as regras e tradições criados nos livros para expandir o passado de personagens que os fãs conhecem da saga Harry Potter.
Em Hogwarts Legacy, o estúdio foi mais atrás no tempo, focando-se na década de 1890 e coloca o jogador na pele de um novo estudante que chega à escola de feitiçaria mais tarde, já no quinto ano. E este é provavelmente a melhor decisão que a Avalanche poderia ter tomado. Isso dá liberdade ao jogador de criar a sua própria personagem, num editor simples, mas com muita variação de elementos visuais. Mas a personagem tem voz, e com isso carisma, ao contrário de muitos títulos em que o protagonista é insípido e sem alma. Ao longo da aventura o jogador vai conectar-se à personagem pelo excelente voice acting sempre ativo em todos os diálogos.
Por outro lado, ao introduzir uma personagem com alguma experiência de feitiçaria que chega a Hogwarts, este já leva na bagagem o básico da magia, permitindo abraçar alguns dos feitiços e ações mais avançadas. O jogador recebe um guia de campo de feiticeiro pelo Ministério da Magia para apanhar os conhecimentos de outros estudantes. Na prática e o mais interessante, é que durante a aventura, a nossa personagem não só aprende novos feitiços nas conhecidas aulas de Hogwarts, com os respectivos professores, como os colegas poderão também ensinar através de quests secundárias ou mesmo principais. Mas a nossa personagem é igualmente especial, detentor de uma capacidade de sentir e ler magia anciã que outros, nem mesmo os professores, o conseguem fazer. E esse é um dos mistérios no centro da história.
Apesar do jogo se passar mais de um século antes da saga de Harry Potter, todos os costumes da escola são transmitidos no jogo, desde a escolha da fação através de um sistema de respostas a perguntas colocadas pelo famoso “Sorting Hat”. A diferença entre ser um Gryffindor, Slytherin, Ravenclaw ou Hufflepuff estará nas vestimentas, as salas comuns apenas acessíveis à respectiva casa e eventuais rivalidades que surgem na narrativa, mas nada muito profundo, pelo que percebi.
A construção da varinha mágica é outro elemento que os fãs vão reconhecer e claro, os voos de vassoura, que é um dos meios de locomoção neste mundo. Pena que o Quidditch tenha ficado de fora da aventura, como é referido na própria história, mas o estádio existe, abrindo portas a uma futura expansão dedicada, por exemplo. Também vão participar nas aulas de poções fazer a respetiva mistura na estação. Ao longo da aventura vão ter de recolher ervas e matérias-primas, assim como descobrir novas receitas de poções. As diversas disciplinas estão bem patentes no jogo, incluindo a astronomia em que temos de identificar constelações.
E para quem gosta dos filmes dos spinoffs dedicados às criaturas fantásticas, este é uma das atividades do jogo. Terão de encontrar essas criaturas, utilizar a mala para os capturar e devolver a um habitat que o jogador vai criar. E as criaturas têm de ser tratadas e alimentadas, para receber em troca pelo mágico, utilizado para melhorar o equipamento da personagem. As atividades estão sempre interligadas, de alguma forma, ao progresso da aventura.
A rapidez e a facilidade com que podemos sacar da vassoura para voar, torna a locomoção deste título um dos melhores que vi. A partir do momento em que a desbloqueamos, a exploração ganha todo um novo sentido, incentivando a explorar cada recanto do mapa através do céu. E torna mais fácil ir aos locais assinalados com atividades, acelerando o progresso da aventura. Com o avanço da história a vassoura vai sendo melhorada, tornando-se mais rápida. Há ainda a possibilidade de encontrar um Hipogrifo e usá-lo também como uma montada aérea e outras criaturas, a descobrir na aventura.
Estamos desta forma perante um RPG baseado num mundo vasto que Hogwarts tem para oferecer. Isso significa a exploração do castelo mágico que é gigante por si, mas todas as aldeias e acampamentos em redor e outras áreas que pode visitar, incluindo Hogsmeade, que os fãs podem lembrar-se dos livros e filmes de Harry Potter, como o local onde os feiticeiros se abastecem, compram varinhas mágicas e vassouras voadoras.
Mas o castelo é realmente tudo aquilo que imaginamos, cheio de vida, em que os fantasmas esvoaçam, os quadros falam com o jogador, as estátuas mexem-se, os instrumentos tocam sozinhos. E está cheio de salas secretas, diversos segredos para descobrir, muitos colecionáveis para encontrar. E vão passar muitas horas só a desfrutar da arquitetura e decoração do castelo, tanto no interior, como no exterior do mesmo. Os fãs vão reconhecer muitos dos seus locais, sobretudo inspirados pelos filmes.
Como um RPG, este jogo tem todos os elementos que mais gosto no gênero de mundo aberto à exploração. A organização dos menus, das tarefas, quests, desafios e missões, tudo tem barras de progresso e percentagens para os jogadores fazerem tracking do que querem fazer. O próprio mapa do mundo é mostrado em tons cinzentos, ganhando cor e textura à medida que o jogador visita os locais, em tempo real. Desta forma sabemos sempre os locais que ainda não visitamos, incentivando a explorar cada recanto.
E existem diversas atividades para fazer, o mais variado possível para o gênero, que incluem libertar campos de goblins, encontrar todos os tesouros e itens dos locais, superar puzzles do Merlin, corridas de vassoura, masmorras, tesouros para encontrar através de mapas abstratos, corridas de vassouras e outros mini-jogos de feiticeiros. E as atividades vão sendo introduzidas ao longo da aventura, sem saturar o jogador. As quests secundárias oferecem sempre recompensas interessantes, desde peças de roupa a novas magias e até o acesso a mais atividades. E é sempre bom conhecer o background das personagens, sendo possível fazer perguntas adicionais.
Hogwarts Legacy é sobretudo um jogo de exploração, para quem gosta de procurar segredos, falar com personagens e conhecer as suas histórias. Há sempre qualquer coisa para fazer, mas tudo bem organizado. O mapa tridimencional é uma ferramenta essencial, onde se podem marcar pontos com guias e desbloquear vários pontos de fast travel. O jogo nunca nos obriga a caminhadas longas, de fazer perder tempo. Qualquer local previamente visitado tem umas fontes mágicas que podem ser ativadas, permitindo saltar do castelo para as aldeias instantaneamente. Mas mesmo as viagens são agradáveis, porque encontram-se sempre novos segredos, sobretudo depois de desbloquearem a vassoura.
Outro ponto a destacar é a quantidade de magias possíveis de fazer, a maioria delas conhecidas pelos fãs. Da Aparecium para revelar mensagens secretas, Ascendio para fazer flutuar no ar, são várias as que vão aprendendo. E até as chamadas magias proibidas neste mundo vão poder aprender, como a Avada Kedavra, que até tem gerado alguma polémica entre os fãs. Estas são utilizadas sobretudo nos desafios das arenas, onde temos de enfrentar hordas de inimigos e criaturas.
O interessante é que as magias estão integradas nas mecânicas dos puzzles, na maneira como se interage com o mundo, de uma forma praticamente natural e intuitiva. Mas estas magias são igualmente utilizadas nos combates, obedecendo a um sistema de cooldowns para evitar um spam das mesmas. Os adversários e inimigos conjuram escudos de uma cor que têm de ser partidos com a magia com o tom correspondente e dessa forma criar combos divertidos. Levitar inimigos no ar, puxá-los para o jogador e depois descarregar fogo ou outros ataques.
Os combates são desafiantes e divertidos, misturando a agilidade em esquivar dos ataques ou ativar o escudo no timing perfeito para repostar. Inicialmente pode ser confuso pela forma única de combate, mas depois torna-se bastante intuitivo e divertido. É mesmo possível arremessar objetos aos inimigos ou ativar as habilidades únicas da personagem relacionadas à sua magia anciã. E as animações são deliciosas e viciantes. E o jogo não está constantemente a bombardear o jogador com combates, havendo um bom equilíbrio. No geral, os combates são um dos pontos mais positivos da aventura, sobretudo depois de dominarem as mecânicas e os combos.
Há ainda a possibilidade de abordagens furtivas em algumas missões ou na forma de eliminar inimigos silenciosamente, através de uma magia de invisibilidade. Esta abordagem permite eliminar inimigos bem mais perigosos sem se exporem em combate.
A jogabilidade é bastante refinada, a câmara leve e com boa resposta. Este não será o mundo geral mais detalhado, se o compararmos a jogos como Horizon: Forbidden West ou God of War Ragnarok, mas é muito bonito na big picture, na preocupação do estúdio em criar um mundo colorido e vibrante, sobretudo cheio de vida, onde as plantas reagem, as partículas flutuam no ar, as borboletas esvoaçam, arbustos em forma de dragão. As paisagens são no geral igualmente atraentes. As vilas são também cheias de vida, com um estilo artístico que lembra um pouco o Fable.
As personagens não têm as feições mais detalhadas que vimos num videojogo, mas ganham vida graças ao excelente voice acting da maioria dos atores que lhes dá voz.
Relativo aos elementos de RPG, a personagem pode equipar chapéus, óculos, cachecóis ou jaquetas com melhores propriedades de defesa e ataque, assim como diferentes perks. No sistema de qualidade entre os comuns verdes e os lendários laranjas e até peças que precisam de ser identificadas antes de poderem ser utilizadas. É possível trocar a base da varinha, embora seja cosmética. Mais à frente na aventura, o jogador vai desbloquear as árvores de talentos para aprofundar a sua build, distribuindo pontos acumulados a cada nível de experiência. Aqui pode dar destaque a uma ou outra ramificação de magias que mais gosta de jogar. De salientar a interface muito refinada, permitindo ativar cada magia no atalho e criar sets diferentes, entre os feitiços de ataque e de utilidade, por exemplo.
Durante as quests, a personagem pode fazer algumas escolhas e decidir se quer ser bondoso ou malvado com os seus colegas. Não existe nenhum sistema de alinhamento, como os jogos da BioWare, mas algumas consequências imediatas. Desde não querer entregar um objeto que nos foi pedido pela personagem na sua quest ou no fim extorqui-lo com uma recompensa adicional. Mas esse comportamento ficará ao critério do jogador, sem nenhuma aparente consequência a longo termo.
Na história vão também ter acesso ao Room of Requirement, um espaço onde o jogador pode mobilar, modificar o cenário e organizar as suas próprias estações de trabalho para criar poções ou cultivar plantas. São dezenas de objetos e molduras para personalizar o espaço, incluindo mudar o tamanho e as cores, tudo feito com um toque muito mágico. É aqui que vão ter também acesso ao viveiro das criaturas. Há muitos objetos e máquinas a desbloquear ao longo da aventura para poderem utilizar neste espaço.
Muito ainda poderia ser dito sobre Hogwarts Legacy, mas este é o melhor jogo de Harry Potter que poderiam receber, mesmo sem a existência do protagonista. A Avalanche criou um mundo fantástico que certamente vai agradar os fãs. Mas sobretudo, criou um mundo lindo para ser explorado por qualquer outro jogador que nem sequer tenha muito conhecimento do universo, como é o meu próprio caso. É divertido, variado e longo para se perderem. Tem um sistema de combate muito divertido e muita coisa para descobrir. O ambiente de participação nas aulas de magia, a quantidade de alunos presentes no castelo e mundo vibrante dentro e fora de Hogwarts são exemplares. E isto sem ignorar a componente sonora, com uma banda orquestrada, inspirada pelos filmes.
Este é já o primeiro grande candidato a jogo do ano. E agora que venha daí conteúdos adicionais, tais como os torneios de Quidditch.