Não sei exatamente quando Fire Emblem passou a ser a minha série de videojogos favorita, entre os sucessivos bons títulos lançados e a catadupa de desilusões de Pokémon que abriram esse espaço especial no meu coração. Isto faz tanto com que eu goste facilmente de tudo o que Fire Emblem faz mas que seja anormalmente exigente com esse mesmo tudo. E onde fica Fire Emblem Engage, o último jogo lançado para a Switch?
Fica num dos melhores e mais divertidos jogos da série, mecanicamente mais evoluído do que tudo até hoje na franquia de tactical RPG. Só que passa – intencionalmente – ao lado de qualquer noção de história, elemento para mim indissociável de qualquer género que tenha “RPG” por ali algures.
Pronto, não precisam de ler mais. Se os criadores assumem que não nos querem focados na história, para quê desenvolver mais?
…
(O penúltimo parágrafo foi um resumo honesto do meu texto, nada irónico. Mas vá, se sempre quiserem ir mais a fundo, sirvam-se.)

Tomem lá terraplanistas, um mundo circular.
INOVAR NÃO É PECADO…
As novidades são uma constante em Fire Emblem. Há uns dias o Gonçalo Carvalho e eu tivemos oportunidade de baptizar um podcast em que eu dava nota disso mesmo. Até quando não correm bem (estou a olhar para ti Laguz de Path of Radiance e Radiant Dawn) dou graças por existir tal frescura ao 17º jogo principal da série. Essa frescura é das melhores coisas que Fire Emblem tem, pois não pode ser acusado de estagnar pese a sua longevidade.
Em Engage, temos a mesma estrutura quadriculada a servir de mapa onde os nossos diminutos (8-12 personagens) exércitos enfrentam os maus. De volta estão o triângulo de armas (uma espada é melhor face a um machado, este face a uma lança e esta face a uma espada) e os mapas mais nuanceados, ambos conceitos abandonados em Three Houses. Longe vão as tarefas e aulas intermináveis (mas excelentes fontes de dopamina) desse mesmo jogo. Em Engage, tudo o que realmente importa passa-se ao longo de 26 mapas (mais uns quantos opcionais) e o resto é encher chouriço.
Ao misturar estes e outros conceitos já conhecidos para os fãs de longa data a mais uns pormenores – e um certo pormaior – temos o Fire Emblem com o loop mecânico mais divertido e interessante desde, com toda a certeza, Fates (2016), e, discutivelmente, Binding Blade (2002), que antes da série ser lançada no Ocidente estabeleceu um cânone mecânico do qual a série pouco se desviou desde então, após muito experimentalismo na era da Famicon e Super Famicon.

“Luna, Navegante, segue o teu rumo…”
O pormaior que vos refiro é a mecânica que dá titulo ao jogo: Engage. Ao invocar uma espécie de auras espectrais de protagonistas de Fire Emblems anteriores, cada personagem pode equipar um anel (ou pulseira se tiverem o DLC, que para quem gosta dos mapas é muito bom, caso contrário não se incomodem) que a torna um híbrido espectral com esse protagonista. Da poderosa combinação resultam várias habilidades adicionais e ataques especiais que duram três turnos. Juntem a novidade de fazer um adversário largar a sua arma e impossibilitá-lo de ripostar após o vencermos no ‘triângulo’, armas pesadas que empurram inimigos uma quadrícula no mapa e certos grupos de personagens (cada grupo agrega as tradicionais classes) que lhes dão efeitos adicionais como juntarem um ataque passivo a outro companheiro e a Intelligent Systems cricou o ecossistema tático mais variado e nuanceado da série.
Os mapas não variam assim tanto no objetivo principal (derrotar toda a gente ou um boss) mas têm vários outros secundários (salvar NPCs, chegar a uma aldeia) que nos enriquecem cada mapa, nos melhores puzzles de gameplay que vi na série desde Fates: Conquest. Tudo isto que acontece no ecrã raramente foge dos 30 FPS, o que é notável na Switch mas se explica com alguma honestidade da Intelligent Systems em baixar a escala do jogo face a Three Houses (que tinha muito mais elementos a acontecer de cada vez). Ainda assim, notarão uns soluços entre animações de batalha e regresso ao mapa. Notei ainda que mapas (um ou dois, relaxem) com muitas unidades voadoras obrigam a Switch a processar muitas asas esvoaçantes ao mesmo tempo. Pobrezinha.
Ah, e o Engage dá toda uma vibe de Power Rangers. Isso também.

Power Ranger Verde, Aquafresh, Azul e Vermelho
…MAS A PREGUIÇA SIM
Já referi que Fire Emblem Engage passa intencionalmente ao lado de qualquer noção de história. Uma parte da entrevista aos developers confirma que esse foi o intuito para que o jogador desse prioridade às mecânicas e jogabilidade. Não os vou acusar, portanto, de incompetência na escrita. Mas assumirem que isso se intromete em disfrutar da restante experiência como justificação? É preguiça de quem cria e que não respeita as suas origens, vejamos:
– o nosso personagem é um dragão divino que acorda, amnésico, do seu sono de mil anos;
– vai reunir companheiros de reino em reino à medida que coleciona os Emblems de outros mundos para impedir o regresso do Fell Dragon, que quer arrecadar os mesmos Emblems;
– um dos reinos é o reino dos maus;
– é-nos vendido um ou dois plot twists antecedidos de 20 piscadelas de olho, daquelas em que a pessoa não tem jeito nenhum e contorce os músculos todos da cara, que retira qualquer elemento dramático ou de surpresa desses momentos;

Não sei qual dos olhos pisca mais vezes, mas que são bonitos, são.
É isto. Nem vale a pena explicar-vos mais o que acontece. A única coisa que me surpreendeu nesta narrativa é que ela consegue não estragar o que de resto é muito bem feito em Engage. Arrependo-me de não vos ter escrito esta análise há duas semanas com 10 horas de jogo, em vez de o fazer agora com quase 60, pois tinha esperança de que isto fosse a mais algum lado.
Não foi. Essas primeiras horas seriam suficientes, pois o jogo faz um ótimo trabalho de nos introduzir a todas as mecânicas nos primeiros capítulos e a promessa de profundidade narrativa é uma piada. Até as conversas de suporte estão essencialmente reduzidas a interesses mundanos de cada personagem, com raríssimas exceções. Three Houses podia ter uma história mais esburacada que um queijo suíço, mas conseguia ser épico. Entendo que uma história detalhada atrapalhe ou em nada acrescente a certos jogos (Super Mario é um ótimo exemplo), mas qualquer género que assuma algo de RPG deve, na minha opinião, ter uma escrita competente.

História? Meh, anda aqui para dentro de água.
Fire Emblem até já é uma série universalmente acessível: os modos Clássico (personagem morto em combate não volta até ao final do jogo) e Casual (personagem morto em combate volta no próximo mapa) são uma opção em qualquer nível de dificuldade. Dentro desses níveis, Normal tem inimigos bastante permissivos cujo uso ocasional da mecânica Engage banaliza, além de permitir recuar cada ação no mapa sem limites; Hard é um desafio justo em que devemos escolher bem todos os personagens, combinações e armamento mas permite abordagens muito variadas a cada mapa, mas penaliza erros de planeamento; Madenning é absolutamente implacável, mas não injusto: é aliás um brilhante quebra-cabeças onde cada ação conta, mas sempre com uma solução disponível face às ferramentas ao nosso dispor, desde que não nos importemos de abdicar de certos hábitos de jogo. Experimentei todos e este último é das melhores implementações de game design que já joguei – ainda que não seja para toda a gente.
Se existe toda esta acessibilidade, porque não fazer de tudo o resto camadas de uma cebola? Deem-me uma narrativa curta, mas com profundidade para me perder em missões secundárias e enriquecimento do mundo de Elyos.

Ma…mã?
UMA GRANDE SÉRIE? SIM, ATÉ NOS DEFEITOS
Há anos que Fire Emblem prova ser uma grande série de videojogos. Personagens carismáticos, jogabilidade divertida, um motor do género dos RPG tácticos do qual é porta-estandarte. Mantém-se viva com uma grande base de fãs. Tem vendas incríveis. Motiva imensos spin-offs e algum cross media.
Fire Emblem Engage é uma continuação e uma consequência de tudo isso: permite-se ir ao seu acervo de personagens, por mais superficialidade com que as trate, e confere-lhe uma relevância mecânica singular, que deixará os fãs como eu agarrados a várias playthroughs durante muito tempo, tal não é a sua modularidade.

Uma coisa é certa: Fire Emblem Engage tem a melhor versão de Anna (a comerciante que aparece sempre) de sempre
Infelizmente para mim, muitos dos defeitos das grandes séries já se começam a notar nesta. Depois de estar moribunda à volta de 2010, Fire Emblem re-capultou-se para o sucesso global que nunca mais lhe fugiu. Um dos motivos é tentar manter o seu público universal – se na jogabilidade se manteve fresco, nos temas e visuais tende a mostrar uma postura menos madura. O trabalho de design das personagens da ilustradora Mika Pikazo em Engage é inegavelmente detalhado e bonito, mas evoca uma estética anime, cheia de lugares-comuns, que facilmente se percebe que estravaza a estética (que tem tido a sua continuidade desde Awakening) e se entranha no tom ligeiro da história e de todos os jogos. Porque de alguma forma isso deve alargar o público para lá dos veteranos como eu.
Acima de tudo, a minha franquia favorita vai continuando. Se a universalidade é o preço a pagar para isso, que seja. Mas como muitas grandes séries, falta agora a Fire Emblem um título indiscutivelmente sublime, um 10/10, um marco na história dos videojogos. Continuarei à espera.