Apesar de ter começado a jogar ainda muito pequeno, no final dos anos 1980, foi mesmo a década de 1990 na qual amadureci para os videojogos, e não só. Diria até que foi nessa mesma década que a real transformação do mercado aconteceu, para um modelo muito próximo do que conhecemos nos dias de hoje.

Muitos dos meus géneros favoritos, senão a sua totalidade, tiveram o seu apogeu nessa mesma década, ainda que tenham as suas raízes nos anos 1980. Os jogos de estratégia são um deles. Com as diferentes séries que foram verdadeiros filões dourados a enveredarem por caminhos distintos e a demarcarem a sua abordagem mecânica uns dos outros. 

Um desses casos foi o de Settlers, originalmente lançado para Commodore Amiga, tornando-se rapidamente num dos maiores city builders de sempre. Um jogo onde a gestão do bem-estar dos nossos cidadãos e a expansão sustentada das nossas infra-estruturas tinham um peso muito grande em relação à abordagem mais simples do poder militar. 

Um dos pontos-chave deste jogo que começou a ser programado originalmente pelo estúdio alemão Blue byte como mais um god game, é que a mudança para um desafio económico de gestão de recursos e dos meios de produção obrigou os seus criadores a implementarem uma obrigatoriedade mecânica que se tornaria o porta-estandarte da série. Nesse desafio mecânico de optimizar sistemas de produção e de estrutura económica, Volker Wertich e a sua equipa criaram o sistema de estradas que se tornariam famosos com a série e que viriam a inspirar dezenas de títulos nas décadas vindouras.

Nestes 30 anos que separam o primeiro lançamento de The Settlers para Amiga ainda pela mão da Blue Byte, e o lançamento do 8º título principal da série, pela mão da Ubisoft, intitulado The Settlers: New Allies vai um mundo de diferença. E não apenas porque já 13 anos passaram desde o lançamento da anterior iteração, também ela, como todas, pela mão da Blue Byte, ainda que há 6 anos o histórico estúdio alemão tenha sido renomeado Ubisoft Düsseldorf.

O mais estranho é como é que um dos históricos estúdios de jogos de estratégia – especialmente city builders – que não só criou a série Settlers como pegou na série Anno das mãos da Related Designs (hoje Ubisoft Mainz) e a transformou naquela que é possivelmente uma das melhores séries do género, e tem, em New Allies, uma das maiores desilusões videolúdicas que tive nos últimos anos.

Antes de falar o quanto as alterações mecânicas em New Allies transfiguraram esta oitava iteração para algo irreconhecível tenho de tecer o maior elogio a esta nova entrada da série: a sua direcção de arte é simplesmente sublime. O nível de detalhe aplicado a cada componente do cenário, edifício e personagem é impressionante. Fazer zoom ao máximo e ver as animações de construção dos edifícios, hiper-detalhadas, com os engenheiros a receberem os materiais dos carregadores e a martelarem e cortarem os materiais, e vermos esses mesmos edifícios progressivamente a serem erguidos é um dos momentos mais impressionantes que já vi num jogo de estratégia.

Mas infelizmente, os elogios ficam por aqui. Continuo sem perceber o que é que passou pelas mentes dos developers da Ubisoft Düsseldorf para quererem alterar Settler da forma como o fizeram. Depois de muitas, muitas horas, é inegável que de uma certa forma existe uma óbvia direcção de tornar The Settlers numa experiência predominantemente multiplayer online, aproximando-a mecanicamente de Age of Empires. E apesar de adorar Age of Empires, para jogar um jogo que se assemelhe a Age of Empires eu já tenho, bem… o Age of Empires. Qualquer fã de The Settlers quer jogar o jogo por este ter fundamentos mecânicos tão fortes e identificativos que o distinguem do resto.

Pelo caminho ficou a necessidade de equilibrar os recursos alimentares para a população, como é estabelecido por quase todos os city builders, incluindo The Settlers. Podemos construir casas (e dessa forma aumentar a nossa população) de forma indiscriminada, desde que tenhamos os recursos de construção para o fazer. O que significa que podemos ter largas dezenas de habitantes sem que isso nos obrigue a uma gestão cuidada dos alimentos.

Em New Allies existe produção alimentar mas com um fim que considero ser até tematicamente inconsistente com o historial da série. Como é habitual, podemos recolher bagas, plantar cereais, caçar animais e pescar. Mas todos os recursos que obtemos dessas actividades não contribuem para o bem-estar da população (aliás, não existe sequer medidor de bem-estar), e a sua utilização serve apenas para dar boost a determinados edifícios de produção. Por exemplo, o ferreiro pode produzir barras de metal a uma velocidade aumentada se tiver carne para comer. Mas a realidade é que do ponto de vista de custo-benefício de gestão de uma cidade, utilizar os alimentos – um bem essencial à vida humana – apenas como um luxo opcional e não como um elemento mecânica obrigatório é uma falha que desvirtua todo o desenrolar do jogo.

Rapidamente se percebe que os game designers de New Allies querem que produzamos unidades militares o quanto antes, que construamos edifícios defensivos, e que comecemos a lutar por novos territórios. Apesar deste elemento sempre ter existido, qualquer jogador que tenha jogado os Settlers anteriores sentia que em termos de equilíbrio de prioridades, os seus criadores sempre quiseram que gerissemos todos os nossos recursos e população, e que a seguir utilizássemos a nossa força militar para expandir. Em New Allies não. O jogo empurra-nos a fazer uma horda de soldados, arqueiros e magos o quanto antes e partir para a luta, visto que a recolecção de recursos e crescimento da cidade não é feita em termos civis, mas sim como suporte bélico à nossa força militar.

Esse facto é tão óbvio que temos mais de uma mão-cheia de tipos de unidades militares que podemos treinar, mas do ponto de vista civil temos apenas duas opções: carregadores, os cidadãos não treinados comuns da cidade, ou o treinamento que lhes podemos dar para se tornarem engenheiros. E em The Settlers: New Allies a figura dos engenheiros são o verdadeiro canivete-suiço: constroem, expandem os limites da nossa colónia, investigam território coberto pela névoa, identificam veios minerais e ainda carregam tesouros e preciosidades encontradas em marcos territoriais e povoações conquistadas. 

É uma pena que uma empresa experiente como a Blue Byte, aliás, Ubisoft Düsseldorf, que produziu para mim o melhor city builder dos últimos anos, tenha cedido à necessidade de ter numa das suas séries uma espécie de filão dourado dos jogos de estratégia para multiplayer. Com isso perdeu a série Settlers, e perdemos nós, os seus fãs de décadas. Transformar um dos mais emblemáticos e acarinhados city builders num Age of Empires esquizofrénico e de série B, onde a gestão superficial das nossas cidades é apenas subtexto para criar o maior exército possível e esmagar os adversários através da força. Com 13 anos de espera, o tamanho da desilusão de quem jogou todos os Settlers até hoje com a chegada deste New Allies é impossível de ignorar. E apesar da brilhante direcção de arte que o jogo tem, comprar a antologia com todos os jogos até ao 7 é um melhor investimento do que este novo título.