De todos os substantivos e adjectivos que me atribuem nesta bolha, provavelmente “casual” estará entre eles, dada a minha paixão avassaladora por jogos de agricultura e/ou de pesca. Não que seja algo que me importe, já que faço como outro: substantivos e adjectivos no caminho, recolho-os todos e cozinho uma canja com letrinhas. Mas há qualquer coisa que me apaixona com as actividades de pesca nos videojogos. Possivelmente por representarem os momentos mais pausados da acção dos respectivos títulos (quando não são jogos exclusivamente dedicados à faina) e de alguma forma servirem como exercícios de relaxamento para combater a minha ansiedade natural. Nem vou repetir a velha anedota da minha vida sobre a forma como joguei LOTRO, porque é sobejamente conhecida, mas admito que são jogos de pesca o meu verdadeiro calcanhar de Aquiles. Do qual é exemplo este artigo com precisamente 8 anos (há coincidências estranhas)*.
Pesca e Cthulhu. E antes que pensem em piadas com calamares gigantes, não é disso que se trata. DREDGE, o novo jogo publicado pela Team17 criado pelos estreantes Black Salt Games é uma das minhas grandes surpresas do ano, e o jogo ao qual tenho estado agarrado há 5 dias.
Comecemos pela direcção de arte de DREDGE, onde a paleta nos traz um ambiente mais aterrador, com os castanhos e verdes a assumirem um espaço prioritário, encostando os azuis e os cinzentos para segundo plano. É precisamente este espectro cromático que nos ajuda a encapsular o que os criadores apelidam de novo género “pesca de horror”.
Sem entrar em grandes descrições narrativas que acabem por estragar o enredo de DREDGE – história essa que é um dos muitos, muitos pontos altos do jogo – começamos o jogo como um pescador que naufraga ao largo da ilha Greater Marrow, onde o seu governador rapidamente nos empresta um barco com juros que teremos de pagar muito em breve.
É interessante encontrar um jogo onde o nosso protagonista nunca é visto e controlamos apenas a embarcação – dando uma quase ideia de que somos, na realidade, o próprio barco – e que nos apresenta uma história extremamente bem tecida à medida que vamos seguindo a linha de pesca que a compõe.
O loop mecânico de DREDGE é perfeitamente fácil de identificar, e a forma como nos enreda nessa mesma espiral é aquilo que torna este jogo quase impossível de parar de jogar. O ciclo dia e noite tem um papel vital neste loop. Durante as horas de luz diurna tudo é relativamente normal: conseguimos ver os pontos de pesca e as silhuetas dos peixes sob a superfície do mar, assim como os pontos de naufrágio onde podemos recolher materiais para fazer upgrades à nossa embarcação.
Mas de noite tudo muda. A visibilidade encurta muito, mesmo com a nossa parca luz equipada no barco. Para além disso, o cansaço extremo se estivermos demasiada horas no mar vai levar a uma perda progressiva de sanidade do nosso protagonista. E o grande problema em DREDGE é que a perda de sanidade – que é exponenciada pela escuridão da noite – leva ao aparecimento de alucinações que têm existência corpórea e que nos podem danificar o barco.
Para combater esta descida em direcção à loucura temos de descansar com frequência nas ilhas e ilhotas que o permitam, mantendo o nosso protagonista, embarcação e carga a salvo.
Tanto a pesca como a recuperação de tesouros e materiais de escombros são feitos através de mini-jogos simples, mas bastante satisfatórios, que contribuem, e muito, para esse loop que mantém o nosso interesse constantemente activo. Gerir o inventário é parte do desafio de DREDGE e é feito num sistema de quase tetróminos, onde temos de pensar o espaço na embarcação que é dedicado aos seus componentes, como motor, canas de pesca, redes e iluminação, e os diferentes tipos de peixe e recursos que recolhemos da água.
DREDGE representa também uma grande necessidade de vender o peixe e os tesouros que encontramos no mar aos mercadores correspondentes, e estar constantemente a procurar materiais para, aliando ao dinheiro que vamos obtendo, conseguir fazer os upgrades necessários para explorar os quatro cantos do mapa, e os 5 arquipélagos correspondentes. Somemos a isto o facto de que à medida que exploramos o mar vamos encontrar pontos de pesca com requisitos distintos de canas de pesca que possivelmente não temos, o que irá requerer algum trabalho de pesquisa e upgrade da nossa embarcação.
DREDGE equilibra o risco e recompensa de forma perfeita, trazendo ao mesmo tempo o tom sombrio que nunca esperei encontrar num título destes. Desde peixes que só podem ser pescados à noite e que nos vão fazer enfrentar os nosso medos e a nossa própria sanidade para obter, até aos muitos eldritch horrors com os quais nos vamos encontrar no mar alto, mesmo com o sol no pico do céu.
Somemos também a isto os objetivos secundários que encontramos através de rumores dos habitantes das ilhas ou em mensagens em garrafas encontrados à deriva, e que nos dão uma ideia geral de onde encontrar tesouros se nos quisermos desviar do nosso caminho principal.
DREDGE é a grande surpresa deste primeiro trimestre e um dos melhores jogos que joguei em 2023, até agora. É original, brilhante na forma como se apresenta e nos mergulha no seu worldbuilding, e na forma como mantém todas as suas mecânicas simples, mas a contribuírem para um loop magnífico. Se este ano nos deu um jogo verdadeiramente obrigatório, para mim, esse jogo é DREDGE.
* À data de redacção deste artigo