No mesmo fim-de-semana estive mergulhado em dois jogos que têm problemas diametralmente opostos um do outro: Fabledom, que recentemente foi aqui falado, e Havendock, outro promissor colony simulator que bebe muito de Raft e de outros jogos sobre naufrágios.

Mas antes de explicar o que é que me fez estar sentado em torno de Havendock por largas horas, sendo que a maior sessão ininterrupta foram cerca de 3, há que explicar porque é que considero que este jogo que irá ser lançado amanhã em Early Access para o público geral está nos antípodas de Fabledom. Não sendo especial fã da direcção de arte de Havendock, mas apreciando a profundidade de campo que o jogo tem e até a sua modulação tridimensional depurada, mas há algo que me deixou com os dois pés atrás desde que liguei o jogo, uma sensação que dez horas depois ainda não desapareceu. O UI do jogo é tão, tão feio e básico que pensei de imediato que estava a jogar um dos milhares de exemplos de shovelware que vai chegando ao Steam, num esquema de lavagem de dinheiro do qual o João Machado já falou há anos. E nem é por defeito profissional e formativo de ser Designer de Comunicação, ou de ter esta perspectiva ainda mais aprimorada pelo convívio diário em minha casa com uma experiente UI/UX designer, mas… o que aqui é apresentado é pior que um placeholder. E isto encaixa na depuração visual que falei, que me deixa naquela dúvida se é uma decisão consciente ou se uma forma de mascarar deficiências ou incapacidades artísticas. E sinto-me mais inclinado para a segunda possibilidade. 

Com um ritmo de largas centenas de jogos indie que jogo anualmente, é fácil perceber o foco principal das pequenas equipas que produzem cada jogo. Se é um grupo de artistas ou escritores que iniciou um projecto e que completou o seu colectivo com game designers e programadores, ou se o inverso. Havendock é notoriamente um jogo mecanicamente fortíssimo mas com uma direcção de arte deficitária. Uma ironia, como dizia, quando comparado com Fabledom: um city builder onde a direcção de arte é magnífica mas onde as mecânicas são insípidas. Pudessem estes dois casos cruzar-se…

Ao mesmo sinto-me perfeitamente injusto, porque falar do estúdio YYZ no plural é um erro, visto que se trata, na realidade, do pseudónimo de Ying Zhan, autor de pelo menos 16 jogos. Sozinho.

Havendock é, e repito, um city builder, mais especificamente um colony sim com uma vertente de survival. Começamos sozinhos num pontão, a recolher madeira, peixe e materiais que são trazidos pela corrente, e podemos prolongar esse mesmo pontão. Não fosse o título enganar-nos, e a nossa colónia vai mesmo ser uma doca crescente tornada santuário para uma série de náufragos.

Visto que a fome, a sede e o cansaço são necessidades básicas às quais temos de atender, cedo encontramos a tecnologia para dessalinizar a água do mar que recolhemos e a construir um espaço de cultivos improvisados. Mantenhamos a suspensão da descrença de que conseguimos construir tudo isto em quadrados/pontões, e que os materiais e peixe inexplicavelmente continuam a ser trazidos pela correnteza sem nunca pararem, deixando-nos a pensar o que é que aconteceu ao mundo para que ao longo de meses e anos in-game estes materiais continuem a ser trazidos pelo mar. Não é nesse irrealismo que a nossa atenção reside, muito pelo contrário. A progressão e complexificação mecânica de Havendock está tão bem enquadrada  que a gestão do espaço, recursos, e do próprio encadeamento das tecnologias são todas verdadeiramente interessantes que tornam todo o enquadramento de Havendock plausível.

A solução e explicação que a equipa do estúdio YYZ encontraram para a expansão da nossa colónia é interessante: em águas pouco profundas podemos construir pontões, e em zonas de profundidade média podemos colocar pontes que nos permitam construir novos pontões em zonas de águas menos profundas. Em locais de mar profundo ficamos impedidos de construir, mas não de explorar. Mas isso é algo que descobrimos bem mais à frente no crescimento da nossa base.

Visto que Havendock é definido como um colony sim, na primeira meia hora de jogo temos contacto com outros náufragos, que se aproximarão da nossa base em jangadas improvisadas e que estarão disponíveis para se juntarem a nós. Se no início não temos de dar qualquer contrapartida para que se juntem a nós, com a progressão do jogo vão começar a pedir-nos recursos como pagamento para se juntarem a nós.

E se a inclusão de novos colonos na nossa base significa uma necessidade maior de ter alojamentos mas sobretudo comida e bebida para eles, todos estes novos companheiros servirão sobretudo como força de trabalho que nos ajudará (e automatizará) a cadeia de produção e gestão de recursos. É que todos os postos de produção em Havendock são manualmente ativados, o que significa que termos mais gente na nossa colónia significa que podemos atribuir-lhes tarefas e subitamente automatizar a cadeia de produção.

À medida que vamos progredindo na árvore de pesquisa e tecnologia de Havendock – com o desafio de possuir os elementos necessários para ter acesso a cada nova tecnologia – muitas surpresas vão sendo reveladas. E perdoem-me o semi-spoiler por isto, mas as minhas dúvidas do porquê de conseguir ver ilhotas distantes até onde eu não conseguia construir a minha base foram eventualmente respondidas. Havendock eventualmente desbloqueia-nos o acesso a um submarino e à possibilidade de extracção mineral no fundo do mar, abrindo também a electricidade como uma necessidade de funcionamento, e uma pequena embarcação que podemos utilizar para chegar a locais longínquos.

Ainda existem muitas partes do jogo que estão em placeholder, com o aviso que ficarão disponíveis mais tarde. Mas a profundidade e coesão de Havendock são uma tremenda surpresa, assim que ultrapassamos o limiar da sua sensaborona direcção de arte. Onde até o humor e a ligeireza como nos faz olhar para um jogo como este e deixar-nos a pensar porque é que é importante darmos peixe a um pinguim vizinho para que ele nos dê fezes de pinguim em troca. 

Havendock é surpreendentemente coeso e profundo, mecanicamente um dos melhores jogos que joguei do género nos últimos tempos, cruzando na perfeição os elementos de colony sim e de survival. Mas para o encontrarmos precisamos mesmo, mesmo de passar a barreira do impacto visual do jogo, sobretudo de todo o UI. Fãs do género vão decerto encontrar aqui um excelente e profundo título, com uma cadeia de produção e dezenas de tecnologias diferentes para conhecer. Tudo isto num jogo que ainda nem abriu em Early Access e já está mecanicamente mais polido do que muitos jogos lançados na íntegra.