A evolução da imprensa especializada, o surgimento de criadores de conteúdo e influencers, e a própria transformação natural dos mercados com as realidades digitais vieram mudar muito a relação entre as indústrias e a forma como comunicam. Durante décadas os press kits tiveram um papel fulcral na forma de promover novos produtos, novas ideias, novas marcas ou novos posicionamentos de mercado. Na origem destes objectos, os press kits tinham tradicionalmente um formato mais informativo, trazendo dados explicativos sobre os produtos, os filmes, a música ou qualquer outro tipo de objecto que seria promovido junto dos jornalistas. O press kit deveria ser (e era) a fonte primordial de informações sobre determinado produto para o jornalista.

Adicionalmente a esta componente informativa, era habitual os press kits trazerem objectos promocionais. Fossem fotografias de alta qualidade dos filmes ou artistas que se estavam a promover, ou, no advento do CD-ROM, com conjuntos de dados e outros add-ons digitais que auxiliassem a missão de cobrir o seu lançamento. Os press kits são sobretudo uma ferramenta de Relações-Públicas e de Marketing. Uma forma de encapsular a promoção e as informações em torno de um produto com uma estratégia pensada pelos departamentos de marketing.

Trabalho na área do marketing há 14 anos numa área diferente dos videojogos, a indústria farmacêutica, onde as regras de comunicação são extremamente reguladas. Regras essas que estabelecem os limites do que deve ser dito e com que contexto e sustentação científica, assim como o tipo de conteúdo e os limites do que os materiais promocionais podem afirmar, sejam eles direccionados a profissionais de saúde ou não. Legislação necessária, e salutar, diria, com uma perspectiva primordial em vista: salvaguardar o consumidor. As indústrias de entretenimento não têm este tipo de balizas. Regem-se pelos seus códigos deontológicos internos e pelo dos seus interlocutores.

No caso dos videojogos, os press kits são também ferramentas promocionais, uma forma de divulgar um lançamento, criar proximidade com o jogo, e muitas vezes, noutra era, incluir um disco do próprio jogo para que a imprensa pudesse levar a cabo a cobertura atempadamente para coincidir com o lançamento desses mesmos títulos. De forma a que, numa época em que a imprensa tinha um peso maior na decisão dos consumidores, estes pudessem fazer compras informadas.

Como é sabido, entrei para o Rubber Chicken há 11 anos, numa época em que os press kits ainda eram uma realidade, como um veículo de apresentação dos jogos, e esse mesmo veículo de transporte das cópias de análise. Mas nesse período já muito elementos davam sinais de mudança. Os códigos de análise digitais ameaçavam tornar-se ubíquos dada a facilidade da sua transmissão ao eliminar os intermediários (nota: e tornaram-se mesmo), e o número de empresas que ainda utilizavam os press kits como forma de comunicação principal era já reduzido.

Ao longo desta década a empresa em Portugal que continuou a pensar e a utilizar os press kits com maior longevidade enquanto forma de promover os seus jogos dentro da imprensa especialidade foi mesmo a Sony. Uma realidade que viria a terminar com a chegada da PS5, com a pandemia, e com uma mudança total na forma como a indústria comunica.

Percebamos que esta mudança comunicacional se dá não só em algo (aparentemente) frívolo como um press kit, mas até na presença em eventos presenciais. Que o diga a ESA. Lentamente as empresas perceberam que esta comunicação directa com os jogadores permitia uma adaptação dos sistemas de comunicação às realidades contemporâneas. A imprensa, os criadores de conteúdo e influencers continuam a ter a sua importância, mas como extensão dessa comunicação predominantemente digital. 

A imprensa já não é esse elemento primordial de análise e digestão de informação, regra geral, nem existe esse gatekeeping informativo (se me permitirem a expressão) do qual os press kits eram parte do processo. As informações estão hoje acessíveis, de forma ubíqua, perene e imediata a qualquer um, em qualquer ponto do planeta. O papel da imprensa (e o seu declínio em número e a diminuição subjectiva da validade da sua opinião) alterou-se, ficou localizado num nicho, numa validação da opinião que o consumidor já tem porque raras são as vezes que precisa de algo que não apenas a sua própria navegação digital para saber onde vai aplicar o seu dinheiro.

Isto rebate a opinião cínica que tantas vezes vejo pelas redes. Que uma cópia de análise é uma compra de opinião de um jornalista ou crítico de videojogos. Ou pior, que receber um press kit, goodie pack, viagens ou similares é uma prova à vista de todos de uma corrupção de opinião às claras. 

Existem poucos meios profissionais especializados em Portugal. Poucos headcounts subsistem no nosso território para profissionais que se debrucem diariamente a escrever sobre videojogos, uma realidade que tem piorando ao longo do tempo. Por ironia, os sites e blogues amadores, essa grande ameaça outrora considerada pelas revistas tradicionais de videojogos portuguesas – todas elas mortas nos dias de hoje – também eles definharam na sua grande maioria e só por muita teimosia e grandes doses descontroladas de insanidade é que os que existem ainda se mantêm vivos. Acreditem. São neste momento 2h12 da manhã, e em 4 horas estarei a pé, e neste momento estou debruçado sobre um ficheiro de Google Docs num monólogo sobre a existência e justificação histórica de press kits. Para quê? Para o punhado de pessoas que se vão dignar a ler este artigo. E porque a minha paixão patológica pela escrita e pelos videojogos ainda servem de combustível.

Dito isto – e apenas por nós mesmos é que podemos falar – só por um misto de zelotipia e cretinice é que alguém pode acreditar que são cópias de análise, uma t-shirt, um porta-chaves, ou qualquer outro tipo de material promocional, o suficiente para dirigir a tendência de alguém em relação à opinião que publica. Numa balança entre o sacrifício e o esforço de manter projectos destes vivos, das muitas horas semanais investidas e demasiadas roubadas à cama, achar que um código de acesso a um jogo vai ser o suficiente para vender a alma e o nosso carácter é… bem… inefável. Há uma ideia historicamente pré-estabelecida de que todos são corruptíveis, só temos de descobrir o seu preço. Se o preço de corrupção de muitos que vociferam nas redes é apenas um código digital de um videojogo, diria que isso grita a um volume tremendo a auto-consideração que têm do seu carácter. E por extensão, o dos outros.

Divago.

Estando em áreas profissionais distintas em lados opostos desta estrada de comunicação, é mais do que lógico que este tipo de objecto tem um lado múltiplo, entre a componente promocional intrínseca à actividade do marketing, e ao mesmo um reconhecimento da ligação institucional (e até pessoal) entre indústria e imprensa. 

Ao longo destes anos nunca publiquei fotos de press kits, sempre ridicularizei e me opus a unboxings e similares. Olhei sempre para estes objectos com um misto de ferramenta de trabalho e ao mesmo tempo como reforço simbólico dessa ligação institucional. Senti sempre também que promovê-lo nas redes era ao mesmo tempo alimentar essas teorias ridículas de opiniões corruptíveis e ao mesmo gerar uma sensação de possível vanglória desnecessária para com o nosso público. E nem me peçam para falar sobre aqueles que ainda hoje têm no OLX e Ebay press kits portugueses à venda, a tentaram lucrar com essa relação de confiança com as marcas de videojogos.

O meu fascínio pessoal por estes objectos ia um pouco mais longe, numa perspectiva profissional e artística. Como disse, a empresa que durante mais tempo manteve esta produção de press kits foi a Sony. Não que as restantes marcas não tivessem momentos ocasionais, ou soluções diferentes de comunicação, e de muitas formas inesquecíveis, como a caderneta de Miis da imprensa nacional do Tomodachi Life da Nintendo. Mas os press kits da PlayStation eram na sua maioria inspiradíssimas peças de design, gráfico, e de embalagem, com ideias tremendas que muitas vezes levava para o escritório para “dissecar” (entenda-se, analisar a fundo, nunca destruí nenhum press kit a bem da arte). Mais do que os goodies que acompanhavem e eram inclusos nos press kits, era o próprio processo criativo e a construção daqueles peças que me interessavam enquanto profissional da área. Para além de, obviamente, representarem recordações palpáveis de alguns títulos, e alguns momentos de todo esta aventura da escrita de videojogos.

Os press kits são hoje, na sua grande maioria, momentos do passado. E a marcar esse mesmo momento “le roi est mort, vive le roi” que sentimos com o que foi outrora a utilidade e existência dos press kits, que hoje, dia em que sai um dos títulos mais aguardados do ano, The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom, a Nintendo enviou para um conjunto de meios e pessoas não um press kit, mas um care pack relacionado com o jogo. E depois desta longa explicação sobre press kits, da sua utilidade, apogeu e quase-desaparecimento, vou incumprir com a minha tradição auto-imposta de não mostrar fotografias de kits enviados, e mostrar-vos o que já viram sobejamente pelas redes nos últimos dias, esse mesmo pack de Tears of the Kingdom. E vou fazê-lo como um marco desses tempos idos, numa reflexão não só de tudo o que mudou e tudo o que irá mudar na forma se comunica e como se fala de videojogos. Não sabendo se este poderá ser o último objecto do género que irei receber na minha carreira de crítico videojogos, que fique aqui demarcado. Porque, eu, como o Pessoa nas suas derradeiras palavras antes de morrer, também não sei o que o amanhã trará.