A menos que me veja a ser obrigado pelo instinto de sobrevivência, eu nunca serei agricultor. É não porque menospreze o trabalho árduo de quem passa anos duríssimos e intensos para conseguir produzir os alimentos que mantêm a nossa sociedade. Mas sim por bloqueio psicológico. Quando tinha 16 anos, ainda longe do pico da minha hipocondria, mas a caminhar para ela, um vizinho farmacêutico reformado tornado tratador de cães amador contraiu Doença de Lyme por uma carraça. O seu passado farmacêutico levou-o a tratar-se a si mesmo, até que foi, infelizmente, tarde demais. Desde essa noite que fiquei com um bloqueio de não conseguir pisar relva, trauma esse que ultrapassei diversas vezes nos últimos dez anos em todas as situações em que tive de correr atrás de um dos meus filhos. Afinal, há algo de muito primordial na necessidade de proteger os nossos filhos que ultrapassa até os maiores bloqueios.

Depois de uma entrada de artigo bastante deprimida (e deprimente) é altura de nos animarmos com mais um farming simulator aconchegante. O Rui ainda no último episódio do Split-Chicken dizia que de alguma forma os jogos deste género acabam sempre por encontrar caminho até mim. E eu posso acreditar nisto.

Everdream Valley vem na linha de My Time at Portia, levando a tradição notabilizada por Harvest Moon e Story of Seasons para um ambiente completamente tridimensional. Neste jogo vivemos aquilo que milhões de crianças, e possivelmente muitos dos que nos estão a ler, viveram: umas longas férias de verão na terra, com os avós. 

E estas férias são passadas numa quinta que está algo abandonada, com os nossos avós virtuais a justificarem o estado a que a propriedade chegou com a sua idade avançada e a respectiva incapacidade de levarem a cabo as árduas tarefas quotidianas da agricultura e pecuária.

Este é então o mote para que comecemos a recolher materiais e a restaurarmos a quinta, pouco a pouco. O que Everdream Valley traz de típico do género é que o podemos jogar ao nosso ritmo. Seja num passo acelerado a cumprir as quests que os avós nos vão dando e que vão sendo uma espécie de tutoriais e de introdução de mecânicas, ou lentamente a cultivar e a tratar de animais. Ou, dado o vasto mapa coberto por nevoeiro, explorar os limites da propriedade e ir restaurando aos poucos as pontes que nos levam para a outra margem e que estendem, e muito, o jogo.

Everdream Valley é, em termos de pecuária, dos jogos mais complexos que já joguei, incluíndo até apicultura nas nossas tarefas diárias. Temos a possibilidade de zelar pelo bem estar dos animais da nossa quinta, de construir currais confortáveis para si, e de permitir que eles se reproduzam, para além de recolhermos os seus ovos, lã, leite, entre muitos outros recursos que os animais da quinta nos conferem.

Se o loop mecânico diurno é o tradicional deste género, é de noite que Everdream Valley traz algo distinto: quando dormimos temos sonhos com mini-jogos em que estamos na pele de animais, e temos de resolver pequenas missões, de espantar lobos a fazer um carreiro de patinhos nadadores. E sim, Bran Stark, eu sei o que fizeste o Verão passado.

A pequena equipa do estúdio Mooneaters esteve nos últimos 2 anos a desenvolver o jogo e  a disponibilizar demos frequentes para ouvir a comunidade sobre este título. E se há muitas ideias interessantes aplicadas a este jogo, eu acho que a única que quase me fez desistir dele (até encontrar uma solução de recurso) foi a pastorícia. A um determinado momento da nossa aventura, o nosso avô dá-nos um apito com o qual podemos controlar o nosso cão-pastor, e controlá-lo para que ele encaminhe as ovelhas para a quinta. Mas a forma como o fazemos é com um misto de controlo de movimento com o analógico esquerdo e uma projecção luminosa com o direito, “obrigando” o cão a ir nessa direcção. Estive 30 minutos a tentar recolher todas as minhas ovelhas, até que percebi que a velha máxima de “se queres algo bem feito, fá-lo tu mesmo” aplica-se aqui na perfeição. Simplifiquei todo o irritante processo de pastorícia simplesmente a afagar a cabeça de cada ovelha, fazendo com que elas me seguissem por 20 segundos, direcionando-as assim para o seu curral. Simples. E guardei o apito no cofre.

Para um jogo de agricultura e exploração tão vasto, muitas vezes Everdream Valley fez-me sentir perdido. À medida que vamos tendo uma quinta cada vez mais complexa para gerir do alto da sapiência dos nossos 11 anos de idade, e mais sentimos a falta de um compêndio a explicar alguns elementos básicos, como a alimentação de animais. Ainda que seja possível reler o tutorial de muitas das mecânicas, são por vezes os pequenos pormenores que nos exigem informações às quais não temos acesso.

Everdream Valley é uma excelente surpresa num género que tem visto chegar ao mercado, pela mãos de criadores indie, algumas das mais criativas propostas de farming simulators. Com uma direcção de arte cativante e dirigida para toda a família, este jogo do estúdio Mooneaters é mais um exemplo de um título para os fãs do género passarem dezenas de horas relaxantes.