Seria hipócrita da minha parte se não admitisse que o primeiro impacto, o visual, costuma ser um elemento relevante na curiosidade que um jogo suscita. Não falo apenas de jogos que apelem aos nossos sentidos por uma fidelidade visual próxima do realismo, mas também de direcções de arte que nos conquistem. Há sempre, como em tudo, muita subjectividade envolvida. Mas se tantas vezes nos surpreendemos com situações de jogos que por trás de uma aparência desinteressante escondem verdadeiras pérolas da criatividade em termos de game design, o inverso, jogos visualmente estonteantes que são um invólucro mecânico, é igualmente frequente.
Um caso como o segundo é Ravenbound, um jogo desenvolvido pelo estúdio sueco Systemic Reaction, um grupo de desenvolvimento interno pertencente à experiente Avalanche Studios.
Não é por isso de espantar que Ravenbound seja lindíssimo. Que o seu vasto mundo aberto seja deslumbrante, que estas terras de óbvia inspiração nórdica demonstrem a qualidade da equipa que produziu este jogo. O problema desta belo mundo é ser uma casca vazia de conteúdo. Um cenário bem composto à volta de nada.
As premissas em torno deste Ravenbound são interessantes. Trazer para este mundo uma abordagem tão em voga, a dos roguelikes, e aplicá-la a um action RPG em mundo aberto é uma quase fórmula para um sucesso anunciado. Mas a execução de muitas destas ideias, somadas a tantas outras, atabalhoadas, resultam num jogo esquecível, e numa das grandes desilusões do ano.
A justificação conceptual dos elementos roguelike prende-se com a narrativa simples e tangencial deste jogo. Aqui encarnamos o Corvo, uma arma ancestral criada pelos 5 deuses aprisionados de Àvalt, e temos como missão destruir a corrupção criada na terra pelo 6º deus, o singelamente apelidado de Traidor.
Em cada tentativa vemos o Corvo a procurar um guerreiro para ser o seu receptáculo em Àvalt, e sempre que morremos aquele procura o corpo de um novo guerreiro, aleatoriamente gerado para prosseguir a sua missão de vingança. Qualquer semelhança com outras histórias não é certamente coincidência.
A travessia do território é feito de duas formas: ou utilizamos pontos específicos que nos permitem tomar a forma do Corvo, e voar, atravessando dessa forma uma distância maior, e regressar à forma física, do guerreiro que nos serve de receptáculo, para derrotarmos os pequenos acampamentos espalhados pelo mapa.
Não é por isso de surpreender que o combate seja o ponto fulcral de todo este jogo. E ainda que as lutas sejam mecanicamente interessantes, dado o foco que têm em todo o jogo é muito difícil de as considerar exímias. Todo o processo se desenrola à volta de dodging – que com um excelente timing nos dá acesso ao um estado de frenesim que aumenta o nosso dano – e o bloqueio – que por sua vez nos confere um escudo sobrenatural adicional quando temos um timing perfeito.
O combate é, sem surpresas, muito desafiante. Mas as recompensas para todo esse desafio é menos do que relevante. É que há uma camada adicional a todo este jogo, uma espécie de dimensão de deckbuilding nas bonificações que temos aplicados ao nosso personagem em cada run. E esse baralho de cartas equipado é feito de uma forma que teoricamente é interessante, mas cuja aplicação prática contribui apenas para o quão monótono o jogo é.
Sempre que derrotamos inimigos recebemos fragmentos de cartas. Para além disso, cada campo de inimigos tem um baú disponível quando estes são derrotados, que nos dá mana ou 3 cartas por onde escolher. Cada carta vai atribuir-nos bónus de ataque e defesa, mas também capacidades passivas. Para equipar as cartas que vamos recolhendo temos de gastar a mana que conseguimos encontrar aleatoriamente nesses mesmos baús, obrigando a uma gestão apertada de quais as cartas que vamos equipar.
Este loop de combate e abertura de baús vai contribuir para outro elemento do jogo: a barra de ódio do Traidor. Sempre que abrimos um baú aumentamos a probabilidade de que entre as 3 cartas disponíveis para escolher, que alguma (ou algumas) sejam cartas de ódio, que exponencialmente vão dando bónus de HP e de ataque aos bosses subsequentes que encontrarmos nesta run. O equilíbrio risco e recompensa vai obrigar-nos, sem surpresa, a termos de morrer muitas vezes.
As cartas desbloqueadas entre as runs vão sendo adicionadas ao baralho geral de criação de personagem, permitindo, através de RNG, que os 3 receptáculos disponíveis para incorporarmos em cada run sejam potencialmente melhores que as runs anteriores.
Existem também side-quests mas elas são inúteis. Podemos arriscar a fazê-las, e provavelmente vamos perder muito HP que só conseguiremos recuperar se pagarmos a NPCs 50 moedas para recuperar a vida perdida. Tendo em conta que 100 moedas são muitas vezes a recompensa, perdemos quase metade da recompensa destas mesmas side-quests.
O loop do jogo acaba por ser tão vazio quanto o próprio jogo. O sentimento de progressão é atroz, e está intimamente ligado à geração aleatória dos personagens, retirando-nos agência na progressão e melhoria dos nossos receptáculos.
Toda a mecânica das cartas resulta numa das piores aplicações de deckbuilding que vi nos últimos tempos, e dada a sua limitada utilização – predominantemente como fonte de alteração númerico de estatistícas – só contribui para a percepção de que à semelhança dos corpos dos guerreiros que possuímos, também o próprio Ravenbound é apenas um invólucro apelativo, porém vazio.
Ravenbound ficará este ano não só como uma das grandes desilusões, mas também como um dos grandes desperdícios de potencialidade, num jogo onde o desiquíbrio de talento entre a equipa de arte e a equipa de game design não poderia ser mais evidente.