Existe uma linha que separa o antes e depois de Breath of the Wild na série The Legend of Zelda, que está a cerca de três anos de completar 40 anos de existência. Se os ventos de mudança começaram a ser traçados em Skyward Sword, na transição da Wii para a Wii U, a transformação da série deu-se na aventura lançada no mesmo dia de estreia da Switch. O resultado foram 30 milhões de cópias de Breath of the Wild vendidas ao longo destes mais de seis anos, com muitos novos fãs a subirem a bordo nas aventuras de Link. Ao mesmo tempo, os fãs da velha guarda dividem-se no pensamento entre este ser um excelente jogo, mas não ser um verdadeiro Zelda de alma. (wink Ricardo Correia)
Breath of the Wild apresentou um mundo verdadeiramente aberto, uma narrativa minimalista, deixando aos jogadores explorarem e terminarem ao seu próprio ritmo, tornou-se simultaneamente o elemento mais elogiado, mas também o menos apreciado pelos velhos fãs. O conceito das masmorras perdeu-se, dando lugar às shrines espalhadas pelo mundo, que desafiaram os jogadores a resolver puzzles. E os quatro templos, ainda que fosse o mais perto do conceito dos clássicos, também ofereceram uma experiência diferente das aventuras anteriores.
Mas se há algo que ficou patente no primeiro título desta geração é a capacidade de improvisação dos jogadores em criar gadgets, máquinas e veículos, partilhando nas redes sociais os seus trick shots e a capacidade de “partir o jogo”. A Física permitiu uma abordagem distinta aos desafios, à exploração de locais onde provavelmente não era suposto chegarem e fazendo proezas que nem a Nintendo havia planeado. E este foi exatamente o ponto de partida que o diretor Hidemaro Fujibayashi utilizou para convencer o produtor da série Eiji Aonuma para criar esta sequela directa.
Tears of the Kingdom é um jogo que permitiu à gigante nipónica estudar o fenómeno de Breath of the Wild e oferecer aos fãs ainda mais ferramentas de sandbox para os criadores e engenhocas. E estas semanas desde o lançamento do jogo têm sido ricas em partilhas de tanks, mechs, podracers de Star Wars, naves espaciais ou navios piratas. Há de tudo um pouco, tudo de acordo com o plano da Nintendo.
O sucesso do primeiro jogo, a gigantesca base instalada de consolas Switch no mercado, que se recusa a querer chegar ao fim de vida, catapultaram Tears of the Kingdom para um sucesso explosivo, vendendo 10 milhões de cópias apenas no fim-de-semana de estreia. Nunca nenhum jogo da série ou de qualquer consola Nintendo tinha vendido tão rápido como este, na Europa, pelo menos.
Mas a liberdade das construções como base do jogo era um dos meus receios antes do lançamento da nova aventura. Senti que a Nintendo estaria interessada em explorar o potencial a longo prazo do jogo, dentro da comunidade de modders e builders, “esquecendo-se” na necessidade de adereçar as queixas dos fãs genuínos da série. O certo é que a Nintendo conseguiu equilibrar a necessidade de resolver os puzzles de Física naturais do jogo com os elementos de construção. E ao mesmo tempo ter toda a liberdade de os construir para explorar e brincar neste mundo.
Não vão precisar de ser um engenheiro para resolver os puzzles, mas não existe limitações para a criatividade, bastando imaginar soluções práticas ou mesmo desajeitadas para ultrapassar um obstáculo. Se há um abismo para atravessar do ponto A para B, é igual se alinham 10 tábuas para fazer um passadiço improvisado ou se reúnem material suficiente para construir uma Golden Gate. Ou porque não criar uma nave espacial para voar por cima da fenda? O que conta é chegar ao destino ou resolver o puzzle. E tenho a certeza que passei muitos desafios de uma forma para o qual certamente não foram imaginados.
Quatro habilidades e cinco anéis para governar Hyrule
Os pilares desta nova aventura assentam em quatro habilidades principais, que são desbloqueadas no início da aventura, na primeira ilha que serve de tutorial, Great Sky Island. A primeira é obviamente a Ultrahand, a capacidade de se poder agarrar e manipular os objectors físicos e colá-los entre si. Juntar madeiras, adicionar motores, foguetes ou balões, são apenas alguns dos objectos a encontrar pelo mundo. E a Nintendo até oferece máquinas dispensadoras de cápsulas Gacha para acederem a materiais guardados no inventário. O impressionante continua a ser o sistema de Física do jogo, garantindo o detalhe com que colam os objetos com a liberdade que desejarem.
Esta mecânica do Ultrahand está associada a uma outra habilidade que vão desbloquear mais à frente na aventura chamada Autobuild. Trata-se de um historial das construções que fazem, num catálogo pessoal, acessível a qualquer altura. Ou seja, se construir um barco, por exemplo, ou qualquer outra invenção livremente, este fica guardado como histórico para construírem automaticamente. As 30 últimas montagens podem ser consultadas, mas por outro lado, também vão encontrar esquemáticas de veículos criados pela Nintendo, espalhados pelo mundo. Basta terem os materiais por perto e caso faltem podem utilizar um material especial que serve de moeda de troca.
O Ultrahand serve, obviamente, para manipular outros objectos no mundo, tais como alavancas, rodas e outros objectos para resolver puzzles, não apenas as construções. Mesmo o acesso a baús ou armas e itens em locais inacessíveis por Link podem ser facilmente puxados por esta mecânica, funcionando como telecinesia. Lembrem-se que o nome Ultrahand foi inspirado num gadget criado pelo saudoso Gunpei Yokoi, um brinquedo de sucesso, antes da Nintendo se meter nos videojogos.
O segundo pilar é o Fuse. Esta mecânica permite fundir as armas e os escudos com outras armas, mas também qualquer objecto manipulável do cenário. Esta forma veio colmatar as críticas de Breath of the Wild de que todas as armas, das mais fracas às fortes, se destroem facilmente, sendo constantemente descartáveis. A Nintendo não ouviu os fãs, mas dá-lhes a oportunidade de forjar armas poderosas através da fusão. Uma espada com uma rocha na ponta, um escudo com um míssil. Ou a oportunidade de encaixar qualquer outro item, de bombas e gosmas nas flechas disparadas aos inimigos abre um rol de oportunidades limitado pela imaginação. Podem destruir o apêndice sempre que desejarem para o substituir e este é sempre o primeiro a estragar-se.
O Ascend é outra das habilidades essenciais da aventura. É uma mecânica que foi introduzida pela equipa de produção para facilitar o progresso vertical, mas acabou por ficar no jogo final. Basicamente, qualquer tecto pode ser ultrapassado na vertical, seja a saída de uma gruta, em vez de fazer backtrack para encontrar a sua saída. Claro que o jogo utiliza esta mecânica em muitos puzzles de plataformas, mas vai dar muito jeito no improviso para sair de situações apertadas.
Por fim, a habilidade Recall, é a capacidade de Link manipular o tempo e “rebobinar” o comportamento dos objectos. Muitos puzzles podem ser resolvidos desta forma. Pegar na Ultrahand e traçar um caminho com um caixote, saltar para cima deste e aplicar o Recall dá origem, por exemplo, a um elevador automático. A Nintendo brincou com esta mecânica nos puzzles propostos. Sempre que virem uma rocha a cair do céu, não hesitem em saltar para cima destas e aplicar o Recall, pois certamente vão ter a uma ilha no céu.
Por outro lado, à semelhança do primeiro jogo que incentiva Link a encontrar as bestas divinas, que davam acesso aos templos e à respectiva habilidade única. O mesmo se passa nesta sequela, neste caso os quatro templos são inspirados em elementos naturais, tais como o vento, electricidade, fogo e água. Os templos utilizam este tema nos seus puzzles, dando acesso aos Sages representados pelos diferentes povos de Hyrule, como os Rito ou Zora, por exemplo.
E cada um confere a Link um anel que representa a forma espiritual do respectivo Sage, com uma habilidade associada que ajuda o herói. Um deles ajuda a projectar Link no ar através de vento; uma flecha que pode ser carregada com electricidade; uma bolha de água que funciona como escudo; ou a capacidade de arremesso como uma bola explosiva. Há um quinto anel que deixarei para os fãs descobrirem.
A utilização das habilidades dos Sages é um dos problemas que temos de apontar ao jogo. Estes estão sempre presentes no ecrã, acompanhando Link e para os utilizar temos de chegar perto deles e activá-los. Além de ser uma confusão eles andarem de um lado para o outro, porque também atacam os inimigos, a sua inteligência artificial deixa um pouco a desejar. Metem-se no caminho ou fogem de nós quando os queremos activar. Deveria ser algo mais simples activar as suas habilidades directamente da interface, mesmo que continuassem sempre presente no ecrã.
Hyrule em três planos de exploração
Seria demasiado fácil apontar à Nintendo a utilização do mesmo mapa de Hyrule de Breath of the Wild em Tears of the Kingdom, num primeiro contacto. De facto existem muitos locais reconhecíveis, biomas e até localizações, mas os eventos narrativos que separam os dois jogos justificaram as diferenças necessárias na comparação deste mundo. Veja-se o próprio castelo, agora a flutuar no céu como um exemplo.
E isto será apenas o mapa principal. É que nesta nova aventura os eventos deram origem a mais três planos para explorar, as ilhas flutuantes nos céus e todo um submundo, praticamente do mesmo tamanho que Hyrule. São três formas totalmente distintas de explorar. No caso das ilhas flutuantes, estas não são muito extensas, mas suficientemente ricas em tesouros para explorar, acessíveis através das torres de sincronização dos mapas, que agora ajudam a projectar Link nos céus. São áreas mais direccionados a segredos para encontrar, sendo preciso ter alguma perícia para alcançar algumas dessas ilhas.
Já o submundo de Hyrule é algo completamente distinto, num contraste negro e vermelho devido à corrupção que assola o mundo. Para aceder ao subsolo há que encontrar os diversos buracos espalhados pelo mundo e cair nestes em queda livre. O interessante é ser literalmente uma área escura, sem luz, sendo possível espalhar plantas luminosas ou activar raízes para pintar um pouco do mapa desta área. Aqui vão encontrar criaturas próprias, bosses secretos, templos e acampamentos e muito mais. Mas também há a possibilidade de encontrar armas e escudos mais poderosos.
Acreditem que se o primeiro jogo já era massivo, some-se agora ao mapa principal todo o submundo e as ilhas flutuantes para explorar.
Há um misto de emoções a olhar para o ambiente que a Nintendo criou para este jogo. É um mundo vasto, orgânico e interligado, em que a passagem entre o céu, terra e submundo podem ser feitos sem um loading, num exemplo que poucos jogos se podem gabar. Estar numa ilha no céu, observar os pontos no solo e fazer um voo livre, planando pelo céu, é uma das melhores experiências do jogo. De louvar como tudo isto foi empacotado num pequeno cartucho e a capacidade de uma consola com mais de seis anos.
Obviamente que este poderá não ser o jogo mais bonito, utilizando um cel-shading das animações com texturas fracas. Mas olhando o big picture, todo o ambiente, as composições do cenário, regados a mudanças meteorológicas e ciclos noite e dia em tempo real, e neste caso com impacto na jogabilidade, há que dar o mérito à Nintendo.
O impacto da Física continua a ser impressionante, com muitos dos elementos a transitarem do primeiro jogo para esta sequela. Exemplo disso é o efeito da chuva que impede de trepar, o fogo que se espalha, as tempestades que conduzem electricidade nas armas e armaduras de Link. E o facto da personagem ter que mudar de fatos mediante os biomos para se proteger do calor, fogo ou frio, por exemplo.
Mas o comportamento da Física nos combates, com os inimigos a largarem as armas que têm nas mãos, muitas vezes o que estão a carregar às costas que cai ao chão e se espalha. Este tipo de atenção ao detalhe não existe em outros jogos.
Mas ainda no campo negativo, e muitos jogadores vão ter as suas queixas pessoais, os menus do jogo continuam a ser uma confusão. As dezenas de items que acumulamos no inventário, disposta numa grelha, tornam difícil encontrar determinado ingrediente ou objecto. Os filtros são minimalistas, mas considerando as dezenas de horas que vão investir neste jogo, a navegação pelos menus acaba por ser irritante a longo prazo. Sobretudo um jogo que incentiva a constantes combinações e fusões de objectos. Mas salve-se a excelente ideia de uma vez desbloqueada uma receita, Seleccionar um ingrediente e verificar directamente os restantes e pegar ao mesmo tempo em todos para cozinhar. Deveria haver mais deste raciocínio em outras situações do menu.
Obviamente que ter um mundo enorme significa também povoá-lo de actividades e nem tudo o que há para fazer é interessante, ou pelo menos, muitas vezes repetem-se ao infinito. Sejam as mais de 1.000 sementes Korok espalhadas pelo mundo para encontrar, mas há outras actividades como ajudar uma personagem a segurar um placard criando um suporte com materiais em redor. São várias as pequenas coisas para coleccionar ou resolver, incluindo as shrines.
Desta vez as shrines são mais compactas e rápidas de completar. E há mais variedade entre testes de combate e puzzles para resolver. Outras são simplesmente para visitar e aceder ao seu tesouro. Há variedade e são sempre bem-vindas, mas são mais de 150 espalhadas pelo mundo. Mesmo que não as queiram concluir podem ativar para servir de ponto de fast travel.
Mas o jogo tem muito mais para fazer a nível de quests secundárias e histórias ligadas aos habitantes de Hyrule. Umas são acessíveis de realizar, encontrar locais, objectos ou matar alguma coisa, outras são mais elaboradas e obrigam a caminhar pelo mapa. E nem todas são assinaladas, levando a ter atenção às pistas. São muitas dezenas destas quests, que nem sempre dão recompensas interessantes, mas é sempre bom de terminar.
Um dos pontos altos do jogo, dentro da linha principal de quests e obrigatória, são as Tears of the Dragon. Apenas têm de analisar o ponto assinalado por uma gigantesca arte rupestre e ativar a respetiva memória de Zelda. Tal como o primeiro jogo, muito da componente narrativa é desbloquear estas memórias que recomendo. E acreditem, não só são excelentes, como contam de forma paralela a narrativa principal que dá nome ao título: Tears of the Kingdom representa a origem de Hyrule, os primeiros governantes e até como surgiu Ganandorf, o eterno vilão da saga. Não desbloquear e assistir às memórias de Zelda é passar ao lado de grande parte da narrativa, sendo uma das melhorias face ao primeiro jogo. Vão perceber de onde vem esta tecnologia de construções dos Zonai e muito sobre o passado deste mundo.
Por muitas mecânicas que Tears of the Kingdom apresente, algo que o jogo me transparece é felicidade e diversão. Impossível não ficar com um sorriso na cara na maioria das situações, no humor das personagens. Mas ao mesmo tempo o tom épico da missão de Link. A banda sonora, sem muitas vezes darmos por ela, pauta todos os momentos da aventura, entre a exploração, os momentos dramáticos e as situações cómicas, algo que é comum em toda a série.
A compositora Manaka Kataoka já tinha deixado o seu cunho em Breath of the Wild, mantendo alguns dos fios condutores para explorar novas sonoridades em Tears of the Kingdom. E apesar de novos hinos que vão ficar no ouvido, nunca notamos a perda de identidade do ADN de Koji Kondo, nos leitmotivs das ações ou os lullabies associados às personagens.
Tears of the Kingdom é um jogo onde vão facilmente investir mais de uma centena de horas. Os meus créditos rolaram com mais de 90 horas e sinto que só arranhei a superfície do que o mundo de Hyrule tem para oferecer nos três planos. Muitas histórias que me passaram ao lado quando decidi avançar para a reta final da aventura. E acreditem, as quests narrativas finais representam o teste a tudo aquilo que andaram a fazer neste mundo nas primeiras dezenas de horas. Os jogadores vão ser desafiados ao limite: perceber se guardaram as melhores armas, se fizeram os upgrades necessários às armaduras, se fizeram as comidas e elixires necessários ou se aprenderam as técnicas de combate como esquivar ou bloquear ataques.
É que a recta final, obviamente no caminho de encontro de Ganondorf, vão ter os combates mais desafiantes, mas também emocionantes. É provavelmente o maior desafio que alguma vez encontraram num jogo de Zelda. E as boss fights finais são também do melhor que já vi num jogo geral, pela dificuldade versus recompensa, a nossa tendência de pousar o comando e afinal ainda não ser o fim. E ser recompensado com algumas das cut scenes narrativas mais emocionantes da série. E por isso, apenas quando rolam os créditos e paramos para refletir a nossa jornada, é que podemos concluir o tão épico que foi esta aventura. Não desde o início de Tears of the Kingdom, mas de Breath of the Wild continuado nesta sequela.