O ano de 2023 é indubitavelmente excelente para quem, como eu, é fã de Pikmin. Não apenas pela possibilidade de jogar numa plataforma da actual geração os dois jogos que desbravaram um terreno microscópico para uma das séries mais criminosamente ignoradas da história, como o lançamento da quarta iteração, que não só é uma espécie de best of da trilogia que lhe antecedeu, como reinventou e alargou o alcance de Pikmin.
Mas cá em casa, curiosamente, nem devo ser o maior fã da série. O meu filho mais novo, a um par de meses de fazer 5 anos, descobriu Pikmin 3, começou uma nova save e acabaria por completar o jogo a 100% com uma ligeiríssima contribuição minha. Este é sem dúvida o maior teste de game design para Shigeru Miyamoto, se é que este sequer precisa que o façamos. Pikmin é um RTS, um jogo complexo enganadoramente simples que é a tradução perfeita de como um género que tem o seu habitat natural no computador consegue chegar às consolas de forma tão criativa e original. E ter uma criança que não sabe ler a jogá-lo, a compreender o que se espera, e a ultrapassar esse desafio, numa corrida pela gestão de recursos contra-relógio, é um exemplo da genialidade do game designer japonês.
Pikmin 3 já era sublime há 10 anos quando expandiu a exploração da superfície com mais uma viagem atribulada do Capitão Olimar que, sem surpresas, acabaria por despenhar-se. Mas o que Pikmin 4 nos traz é tudo isso, e muito mais. É elevar todos os elementos que fazem de Pikmin uma das mais originais, e para mim, uma das melhores séries de estratégia em tempo real, e saber adicionar tantas camadas de desafio e tantas novas ideias mecânicas, que com quase ¾ do ano volvidos me arrisco a dizer que devo ter jogado o melhor título deste ano, e um dos melhores que figuram no também ele brilhante catálogo da Switch.
Onde Pikmin 3 era conservador dentro da sua elevada qualidade, expandindo em qualidade e criatividade dentro daquilo que o primeiro nos deu, Pikmin 4 é uma explosão de originalidade em todas as direcções. Começamos logo com um impacto distinto de toda a série: o nosso protagonista é uma encarnação personalizada criada por nós, tanto em termos de visual, como em nome. Fazemos parte de uma equipa de resgate interplanetária que recebeu um sinal de ajuda do Capitão Olimar a partir do planeta PNF-404. E muito cedo encontramos uma das primeiras inovações deste jogo, e que certamente mudará, e muito, a série daqui para a frente: a introdução de Oatchi.
Oatchi não é apenas uma criatura canídea extremamente doce, é uma mudança de paradigma mecânico para a série. Ele não é apenas uma montada, como é o carregador oficial de todos os nossos Pikmin. Para além disso com o treino progressivo que vai receber ao longo do jogo vai conseguir fazer praticamente tudo o que os Pikmin fazem e muito mais. A sua capacidade de investir em corrida serve não só para fazer cair para o chão alguns itens que estejam inacessíveis, como uma grande ferramenta para destruir obstáculos, para além de servir para atordoar inimigos, catapultando todos os Pikmin que carrega no seu dorso para cima das criaturas adversárias. A capacidade que temos de o controlar em separado auxilia em muito a optimização da estratégia deste jogo, e elevar a nossa habilidade de Dandori, como o próprio Miyamoto diz. Dandori, que em japonês pode significar planeamento, é aqui atribuída como um desafio adicional em Pikmin 4, testando a nossa eficácia em combate e em contra-relógio. Alguns destes desafios são obrigatórios no avanço do jogo, mas alcançar a melhor medalha possível, a de platina, que atesta a nossa mestria em Dandori, é opcional. E é sobretudo uma tremenda linha de desafio para jogadores mais experientes que querem pôr em prática a sua capacidade de optimização de tempo e de controlo simultâneo do nosso personagem, Oatchi e diversos tipos de Pikmin.
Se Pikmin 1 e 3 expandiram a beleza de um mundo reconhecível para nós mas de um ponto de vista microscópico, e Pikmin 2 levou-nos para cavernas e buracos subterrâneos, Pikmin 4 pega em todas estas ideias e mistura-as, assumindo estes níveis subterrâneos como dungeons onde o desafio é aumentado. Para além da experimentação temática de obstáculos que os criadores da Nintendo Entertainment Planning & Development tiveram, existe uma camada de desafio associado ao facto de que o tipo e número de Pikmin são pré-definidos para cada um destes níveis, obrigando-nos a adaptar e a pensar em cada obstáculo como um quebra-cabeças.
Na superfície, outras tantas mudanças mecânicas. Dos 8 tipos que podemos utilizar na exploração (mais um nono tipo do qual falaremos mais à frente), temos um regresso de todos os tipos criados nas 3 iterações anteriores mais a criação dos Pikmin de gelo. Mas com uma variedade tão grande, os criadores decidiram colocar-nos uma limitação que não tinha existido antes: só podemos carregar simultaneamente 3 tipos diferentes, o que nos obriga a um planeamento, aliás, Dandori superiores aos anteriores títulos.
Apesar de termos seis terrenos na superfície para explorar (com muitos tesouros e segredos para encontrar e resolver), outra inovação associada a este Pikmin 4 é o hub que serve de base para a nossa tripulação. É aqui que iremos encontrar os náufragos que resgatamos pelos níveis, pelos mapas, pelas dungeons e pelos desafios Dandori. Cada um deles vai trazer missões e desafios adicionais, mas sobretudo upgrades, ao nosso personagem e a Oatchi. Porém os recursos utilizados para pagar os upgrades de equipamento do nosso protagonista são os mesmos dos utilizados pelos Pikmin para construir pontes e outras estruturas pelos mapas. O que nos vai obrigar não só a recolher todos os recursos possíveis, visto que iremos necessitar de largos milhares de “cristais” para conseguir que o NPC correspondente nos construa todo o equipamento existente.
Por outro lado, muito do progresso que encontrávamos nos jogos anteriores está agora “fechada” ao treino de Oatchi. Um exemplo disso é a capacidade máxima de Pikmin que podemos trazer: até chegarmos aos tradicionais 100 criaturinhas dos restantes jogos, vamos ter de treinar Oatchi para ir progressivamente aumentando a capacidade para carregar mais no seu dorso. E esse treinamento está intimamente ligado com o resgate de náufragos, visto que cada um que seja trazido para o nosso hub irá dar-nos mais 2 pontos de treino para fazer um dos muitos, muitos upgrades que Oatchi terá à sua disposição. E para quem quiser treinar Oatchi no máximo do seu potencial terá mesmo de fazer completionism e resgatar os 43 náufragos espalhados por todo o jogo.
Se estas novidades não fossem suficientes para demonstrar o quão vasto este Pikmin 4 é, onde as 20 e poucas horas necessárias para terminar o jogo ficam aquém das muitas dezenas para completar todos os desafios a 100%, incluindo uma storyline especial desbloqueada após o final do jogo, e que necessitaremos de completar o seu extremo desafio para conseguirmos, por nossa vez, completar os mapas na sua totalidade.
Adicionemos a tudo isto um modo tower defense, passado pela primeira vez de sempre à noite, com um nono e novo tipo de Pikmin: os brilhantes. É que neste mundo os insectos e demais criaturas não só ficam mais violentos à noite, como querem destruir os Lumiknolls, os ninhos dos pequenos Pikmin verde e brilhantes que nos ajudam nas missões nocturnas. Estas missões passam-se nos mesmos mapas onde a exploração diurna acontece, mas o objectivo é apenas um: impedir que as vagas de inimigos consigam destruir os Lumiknolls que a cada noite produzem uma seiva especial capaz de curar a doença que afecta os náufragos que temos encontrado. Apesar de não existir uma componente de exploração nocturna, todas as construções e reparações que fizermos de dia vão existir à noite, auxiliando-nos na travessia e nos atalhos para derrotarmos todos os inimigos.
Mas apesar de Pikmin 4 ser o pináculo da série, para mim, há um ponto específico em que o jogo piorou substancialmente desde o segundo jogo. O modo cooperativo em ecrã dividido criado em Pikmin 2 mas introduzido na perfeição em Pikmin 3 desapareceu por completo. No seu lugar ficou um modo multiplayer similar ao de Super Mario Galaxy, em que o segundo jogador controla apenas uma mira e disparar pedras contra os inimigos e estruturas, reduzindo-lhes a vida, ou contra os Pikmin, acelerando o seu passo. Depois da experiência brilhante que Pikmin 3 representou para mim e para o meu filho, e acredito que para milhares de pessoas em todo o mundo, de poderem jogar todo o modo de história em cooperação, este vestígio insuficiente de modo co-op é o único calcanhar de Aquiles de um jogo que é virtualmente brilhante em tudo o resto que faz.
Pikmin 4 é o meu jogo favorito do ano até agora, e uma expansão abismal de uma série de estratégia única que já estava num elevadíssimo patamar de qualidade. Não fosse o downgrade do modo cooperativo, e Pikmin seria um dos jogos quase perfeitos que joguei na última década. Mas esse ponto inferior não mancha o que aqui está: um exercício único de criatividade, longevidade, desafio e originalidade. Dizer que o jogo é obrigatório para todos os possuidores de uma Switch é um eufemismo, visto que é daqueles jogos que todos os amantes de videojogos deveriam mesmo jogar.