Quando um jogo indie, modesto, consegue criar uma narrativa madura utilizando personagens antropomórficas, as quais, apesar do seu ar infantil, transmitem-nos uma história de emoções sobre a fragilidade e a beleza da vida, a importância de vivermos em comunidade, as ligações fortes e a força que provêm das amizades e do amor quando entramos na vida adulta, tudo isto embrulhado numa arte 2D como que desenhada à mão em motivos outonais, podemos afirmar que estamos perante uma obra de arte digital. Infelizmente, tudo isto era o que escreveria na análise que nunca fiz a Night in the Woods, o jogo que Fall of Porcupine copia sem sucesso.
A fórmula de Fall of Porcupine é exactamente a mesma e está lá quase como um fac-símile: uma história coming-of-age que utiliza personagens antropomórficos para criar um contraste com os temas adultos e duros que retrata; a arte 2D de traço de ilustração; uma narrativa longa em que o diálogo é a principal interação; uma jogabilidade de platformer simplista com minijogos aqui e ali. Se nunca tivermos jogado Night in the Woods, Fall of Porcupine até pode surpreender como género, mas se o tivermos jogado, sentimos a frustração constante das inúmeras lacunas e desequilíbrios narrativos do jogo.
O ambiente era perfeito para algo muito mais marcante, uma vez que o foco está no sistema de saúde privado, onde o nosso personagem principal Finley, um pombo, está a iniciar o seu estágio como médico do hospital de uma vila pequena. Os temas da morte, da prestação de cuidados de saúde entre quem tem e não tem seguro privado, da fragilidade e limite dos nossos corpos humanos, dos utentes insatisfeitos, ou da forma como um médico evita o burnout no seu dia-a-dia, estão todos lá para serem explorados. Na verdade, a narrativa de Fall of Porcupine toca-os a todos, mas é como se nos estivesse a levar para um lugar que nos obriga a uma reflexão profunda sobre todos estes temas e se esquece de nós ao longo do caminho.
Além de isenta de pinceladas de genialidade, a narrativa é também desequilibrada no ritmo. Este género de jogabilidade adapta-se a algo mais lento, mais contemplativo; no entanto, nunca pode tornar-se aborrecido. E no balanceamento dos actos do jogo ou na necessidade de mais ou menos exploração, o jogo não está equilibrado, o que nos conduz a um enorme bloco central extremamente monótono e sem imaginação que contrasta com as primeiras duas horas de jogo. Existem diálogos muito bons, mas também existem muitos diálogos maus ou simplesmente vazios.
Não ajuda que o jogo esteja repleto de bugs gráficos, glitches e eventuais quebras que obrigam a reiniciar. Para quem ainda assim tiver curiosidade, talvez alguns bons momentos de diálogo (poucos) possam ajudar a digerir tudo o resto, e alguns minijogos interessantes (mas até aí temos o contraste entre alguns realmente divertidos e outros cujo nível de jogabilidade não faz sentido).
Fall of Porcupine é muito difícil de recomendar e o mais frustrante é que sente-se o potencial que tinha para ser um grande jogo. Um Scrubs interactivo que podia tanto divertir-nos como nos fazer reflectir. As peças estão todas lá e o jogo começa por as montar. É pena que nunca termine a tarefa e fique a maior parte do tempo ligado à máquina.