De paixão de nicho reservada aos geeks nas últimas décadas do século passado, até se assumir hoje como uma das maiores forças motrizes da cultura pop, em especial o cinema, área onde as boas adaptações teimavam em não chegar, a Marvel é hoje um fenómeno massivo e apelativo perfeitamente global. Se durante décadas o reconhecimento dos seus personagens pelo público comum se resumia a um punhado de personagens, o extremo sucesso do MCU veio catapultar muitos heróis e vilões para essa notoriedade reservada apenas a alguns.

O Homem-Aranha sempre foi um personagem que estava no primeiro caso. Criado por Stan Lee e Steve Ditko, o famoso herói aracnídeo foi desde cedo um dos porta-estandartes do sucesso da Marvel pós-Era Prateada, e uma das figuras e marcas mais reconhecíveis, o que lhe valeu adaptações ao pequeno ecrã, que vão desde tokusatsu, live-action e animação dos anos 1970, a múltiplas entradas no grande ecrã. Os videojogos, obviamente, não passaram impunes nesta febre do Aranha. Mas – e admitindo que como tudo isto pode ser alvo de debate – poucos jogos, desde a geração de 8 bits até aos jogos tridimensionais, conseguiram ascender a um patamar de qualidade e reconhecimento onde os jogos do Batman historicamente sempre estiveram.

Deve-se, aliás, ao Cavaleiro Negro, as pedras basilares que permitiram à Insomniac presentear-nos em 2018 com aquele que considerei, até há poucas semanas, ser o melhor jogo de super-heróis de sempre. Não fosse o trabalho verdadeiramente inovador da Rocksteady em permitir uma liberdade, horizontalidade e verticalidade a Batman, e possivelmente o caminho que a Insomniac teria para trilhar seria ainda mais árduo. Acredito que muitos milhares de jogadores tivessem partilhado do mesmo pensamento quando joguei Arkham City: o Batman conseguia a travessia e a liberdade de movimentos que sempre tinham falhado ao Homem-Aranha. Mas, a História viria a provar-nos que essa inspiração e essa materialização estariam próximas de acontecer.

Cinco anos após o lançamento do jogo que iniciou esta série, e três anos após um spin-off que na realidade serve de momento intermédio entre esta segunda iteração e o título original, temos Marvel’s Spider-Man 2, que continua agora a história dos dois heróis aracnídeos que protegem Nova Iorque.

Do que já tínhamos sentido com os dois títulos anteriores, é notória a percepção que a equipa liderada por Jon Paquette tem do longo historial narrativo de um personagem tão importante como este. Com linhas narrativas amplamente contadas e recontadas, seja na banda-desenhada e nos seus reboots e universos paralelos, no cinema, na animação, na televisão e até nos videojogos, é possível sentir que existe algo de simultaneamente fiel a todo o elenco tal como escrito historicamente por Stan Lee, Gerry Conway ou David Michelinie, e ao mesmo reinterpretado na sua própria abordagem. Com alterações às identidades, motivações e até fidelidades dos personagens que fazem sentido dentro do contexto, de uma forma como tantos outros media falharam. 

Não são apenas as mudanças aos personagens que conhecemos que acabam por evidenciar-se de forma coesa, mas sim a extrema qualidade e construção de cada um dos personagens, que não só são relacionáveis mas brilhantemente desenvolvidos. O patamar de qualidade da escrita dos diálogos e das próprias relações dos personagens – e em extensão à própria linha narrativa, especialmente a das quests secundárias – que se aproxima do que esperamos nos dias de hoje das produções televisivas de qualidade. E no final de cada sessão de jogo não é apenas a diversão videolúdica que vem ao de cima, é também a seriedade e coesão como este mundo, e os personagens que o habitam, foram escritos.

Se há cinco anos afirmava Marvel’s Spider-Man como a melhor história do personagem contada fora das páginas da BD, com o lançamento intermédio do brilhante filme de animação Spider-Man: Into the Spider-Verse isto já não é bem verdade. Mas afirmar de forma convicta que a história de Marvel’s Spider-Man 2 consegue chegar perto, dando interpretações e construções brilhantes a personagens que bem conhecemos, aproximando-nos emocionalmente deles e criando uma aura de realismo às suas intenções e vivências, deveria ser elogio suficiente para se perceber o excelente trabalho atingido pela equipa de Jon Paquette.

Marvel’s Spider-Man 2 é neste momento um dos títulos que maiores demonstrações de nova geração podemos encontrar. Um dos grandes exemplos disso é o fast travel, de uma fluidez impressionante, e que me dexa surpreendido sempre que tenho de me deslocar entre bairros da Grande Maçã. Um processo tão simples que requer apenas abrir o mapa e podemos fazer fast travel para onde estamos a apontar. E de repente é esse mesmo mapa planificado que numa fracção de segundos assume uma dimensão tridimensional e em que vemos o Spider-Man que controlamos no memento a deambular-se nesse preciso local, já com os seus controlos na nossa mão. Não é apenas a forma surpreendentemente orgânica como tudo isto acontece, ou a rapidez, é a naturalidade como a equipa da Insomniac criou esta passagem numa fracção de segundo entre um menu bidimensional e estarmos de volta a jogar, noutro ponto da geografia.

A minúcia ao detalhe e a direcção de arte a aproximar toda a cidade de um hiper-realismo que uma produção exclusiva desta nova geração já possui, é o que se espera de jogos que já não têm de ser desenvolvidos com um pé numa geração e outro noutra. Mas Nova Iorque e os seus habitantes soam especialmente vivos e verosímeis, com a construção facial dos personagens a tornarem-nos palpáveis e possíveis, e não apenas uma construção normalizada de visuais pré-estabelecidos.

O combate em Marvel’s Spider-Man 2 segue a tradição dos jogos anteriores, dos “ensinamentos” da Rocksteady e do seu código genético que sempre transparecem para Ratchet & Clank. A luta é orgânica, fluída e ágil, e a liberdade total de utilizarmos todas as possibilidades que temos na nossa mão torna estes momentos de acção extremamente pessoais. Seja pela utilização da furtividade, dos poderes individuais de Peter Parker, Miles Morales e mais tarde do simbionte, ou das muitas gadgets que vamos construindo e que gritam Insomniac por todos os pixels, há uma abordagem muito própria a cada um que controla um dos protagonistas. E isto foi algo que pude perceber aqui em casa: cada um de nós os 4 assumia o combate com mais ou menos furtividade, mais ou menos recurso a desvios, gadgets e poderes, com mais ou menos verticalidade ou horizontalidade. E é um ponto de excelência de ter um jogo em que qualquer que seja a nossa forma de enfrentar o combate resulta em momentos de pura diversão e dinamismo.

Se olharmos para um período de uma década para este género, os open world action games, sentimos que existiu uma evolução do pensamento de quem os cria. Sendo um género que nos chega predominantemente por produções milionárias, foi fácil sentir (e criticar) a tendência de fazer jogos cada vez maiores, cheios de pontos coleccionáveis que apenas construíram uma sensação artificial de grandeza a estes títulos. 

Marvel’s Spider-Man 2 é mais comedido na sua abordagem, e em alguns sentidos, mais honesto enquanto open world action game. Existe algum conteúdo adicional para explorar, algumas tarefas secundárias para preencher para obsessivos-compulsivos como eu, mas são em número limitado, e vão-se abrindo progressivamente com a própria narrativa. Quando terminei o jogo fi-lo a 100%, porque me agradou a forma como a Insomniac adicionou estas actividades paralelas. A primeira é que acabou por completo a necessidade de “sincronizar” com determinada área: é a quantidade de actividades que lá fazemos que nos vão permitindo recompensas e até desbloquear novas tarefas e até fast travel. Das poucas actividades, quase todas conseguimos tê-las rapidamente identificadas no maps, menos uma que é mesmo uma busca de tesouros escondidos, e que requer a nossa atenção e a nossa exploração, mas cuja conclusão é interessante nas perguntas que nos vai deixar em relação ao futuro da série. 

Ter a abertura destas actividades opcionais interligadas com a progressão narrativa é algo igualmente interessante. Pensemos em como é a nossa abordagem a jogar a um Assassin’s Creed, com os seus mapas repletos de actividades perfeitamente banais e repetidos. É impossível não ficarmos saturados, se dedicarmos um largo período de tempo a coleccioná-los.

Marvel’s Spider-Man 2 permite-nos tempos de respiração entre estas actividades, a exploração e a progressão do jogo. Da minha parte foi mesmo assim que fui jogando: avançava na história principal, completava as missões opcionais secundárias (e que são, para mim, obrigatórias, tal é a qualidade da sua escrita e das surpresas que nos traz), e ao mesmo tempo ia explorando e terminando as actividades opcionais, os habituais “pontos no mapa” que no caso deste Marvel’s Spider-Man 2 não são assim tão frequentes.

As novas actividades desbloqueadas não só fazem sentido com a progressão narrativa mas também com as alterações aos personagens e à própria cidade, permitindo-nos espaço e tempo para nos dedicarmos a elas , fazendo-as sentir como parte de um contexto maior, e não apenas elementos dispersos ali colocados para nos entreter, como um cão atrás de um Frisbee.

Algumas destas missões secundárias (mas também actividades e até main quests) necessitam que utilizemos um personagem específico, ora o Peter ou o Miles, e a mudança feita através do smartphone entre ambos é tão fluída e imediata, que leva até a troca de frases entre os dois heróis, e que cria um momento de grande naturalidade.

Em termos de conteúdo adicional – e sem surpresas – existem dezenas de fatos para desbloquear exclusivos de cada um dos dois Spider-Man, e com eles packs cromáticos adicionais. Alguns destes fatos são desbloqueados com nível, outros com a progressão na história, e ainda alguns são desbloqueados pela finalização de actividades ou missões secundárias. Sem micro-transações ou grande grind para os obter, há algo interessante em termos de recursos, é que houve um equilíbrio nos requisitos necessários para adquirir todos os fatos e gadgets, algo que no primeiro jogo não aconteceu. Com 100% de finalização na minha save, sobraram-me alguns tokens e recursos, o que significa que é possível a alguém desbloquear todos os elementos cosméticos e não só, sem ter de ser um expert e masterizar todos os desafios, especialmente aqueles que requerem tempo.

Este ano de 2023 tem sido um período arrebatador em termos de lançamentos, e ainda com 2 meses pela frente muito nos pode surpreender. Mas para já fica uma certeza: não só pela sua coesão e maturidade, pelos feitos técnicos e artísticos, pela sua escrita, mas sobretudo pela experiência honesta e contida, Marvel’s Spider-Man 2 assume-se não só como o novo patamar do que um videojogo de super-heróis deve ser, como um dos grandes candidatos a jogo do ano.