“No cost too great.  No mind to think.  No will to break.  No voice to cry suffering.  Born of God and Void” – The Pale King

Hollow, raios te parta, Knight. Foram anos em que deixei de lado este jogo da Team Cherry, olhando-o de longe e sem grande interesse, apesar de gostar de uma boa metroidvania ou um soulsborne (tudo menos aquele Mundo 2 de Demon Souls). Se foi porque achei o jogo demasiado “negro” ou depressivo, se foi devido à ilusão que não podia ter um tema central forte ou que me iria simplesmente encher o tanque da raiva do “git gud” rapidamente, não sei.

O facto é que só decidi olhar para Hollow Knight nas vésperas do Natal passado, precisando de um jogo para preencher as viagens até Lisboa e os momentos “mortos” numa cidade que já não chamo de casa. Porém, este “joguinho” deixou de ser apenas uma coisa para ocupar um curto espaço de tempo, tornando-se quase numa religião viciante, levando-me a praticar a fé de clicar no B, A, X, Y, ZR, ZL, e restantes comandos, evitando ataques, saltando por entre plataformas e a descobrir os cantos e recantos de Hallownest.

Toda esta aventura parece ser linear: ir de ponto A a B, descobrir certa passagem, confrontar determinado inimigo/adversário, recuperar um artefacto e encaminhar-me para o ponto C. Desde o primeiro start que entreguei toda a minha alma às exigências de Hollow Knight, e esta imersão foi tal que só depois de 14 horas de jogo é que me surgiu este pensamento: “como raio se chama a personagem que controlo?”.

Exactamente isso… quem somos neste universo em que insectos têm pensamentos e agem como civilização (perdida)? Qual é o objectivo da demanda?

Estas perguntas só começaram a ganhar vida quando me pus a observar os pormenores das várias divisões que compõem este mundo subterrâneo, deixando a história a ganhar a sua voz, mesmo que não me tenha sido atirada directamente à cara.

Consigo dividir a viagem por Hollow Knight em duas secções. Uma primeira parte em que só queria melhorar tecnicamente, seja por ter mais destreza com os botões ou de evoluir a nossa personagem através de novas habilidades; e uma segunda em que meti um travão no sprintar por entre as várias passagens do mapa, querendo perceber o que realmente se passava ali por detrás daquilo tudo. E comecei pelo o “meu” nome: Knight. Esse é o nome do boneco.

Só muito perto do fim é que tomei contacto com a origem (trágica) do pequeno esgrimista que controlamos. E aí se deu um dos primeiros cliques que esta história taciturna tentava me contar através de vários mecanismos.

Não querendo abrir a barragem dos spoilers, a história vive em redor da luta entre a escuridão e luz, de uma guerra entre seres divinos e do controlo colectivo permanente vs a liberdade para pensar e que no fim de contas poderá causar uma decadência de uma dada civilização. Isto parece estranho, mas são os temas estruturais de  Hollow Knight e que podem abalar qualquer um.

Contudo, a tal luta entre trevas e luz não é preto versus branco, pois esta dualidade está, como em tudo, tingida por tons acinzentados e que podem provocar um debate intenso. A infecção que mora em quase todas as regiões que compõem Hallownest foi provocada por via de um amuo (é esta a melhor palavra) de uma divindade conhecida como Radiance. Esse amuo adveio da revolução encetada pelo Pale King, outra personagem “divina” dentro deste universo, que concedeu consciência e liberdade emocional a todos os seres, em oposição do controlo em modo hive mind da Radiance.

Pale King com o Hollow Knight

Pale King com o Hollow Knight

Parece que estou a tornar a história do jogo mais complicado do que é? Não, de forma alguma… estou até a simplificar em excesso. Hollow Knight bebe da mesma fonte que Bloodborne na profundidade do seu lore, visitando temas extremamente delicados, querendo com isso potenciar uma boa discussão com quem se envolve com o seu universo.

A imersão na jogabilidade e no querer destrancar cada canto toldou-me o juízo e, como os vários bichos infectados, só queria saber do instinto mais básico: sobreviver. Porém, quanto mais vagueava por este mundinho criado pela Team Cherry, mais em apercebi que as coisas não eram como pareciam e esta verdade tornou-se clara no fim do jogo.

Hollow Knight oferece cinco potenciais finais, com dois a terem sido adicionados por via de um DLC. Normalmente, neste tipo de jogos um deles é sempre considerado o final canónico, e a comunidade constrói sempre o seu ranking do final bom/menos mau para o pior possível. Só que neste caso é inexistente tal premissa, com a equipa de criação a ter levado mais além aquilo que os soulsborne fizeram. Todos os finais são canónicos, todos eles têm a sua verdade e validade.

O jogador escolhe o desenlace final e esse “fim” é… o fim real. Para uns isto pode ser interpretado como falta de coragem da equipa de produção ao não conseguir escolher o cânone conclusivo, enquanto outros – o meu caso – aplaudem a coragem de ter sido conferida essa possibilidade de escolher a quem joga. A verdade é que isto mantém vivo o interesse em todos os finais, permitindo que sejam válidos ad eternum.

Não vou especificar os finais, isso podem ver via YouTube ou sites como Quora e afins – e o próprio Hollowpedia –, mas todos eles abrem uma porta para o futuro, e fazem sentido em termos de continuidade. É como cinco caminhos diferentes tivessem acesso à mesma porta, podendo existir em simultâneo.

Ou seja, quando entrei em Hollow Knight (nunca tinha visto um vídeo no YouTube sequer sobre a sua história) vim atrás só do “preencher as horas mortas”, pensando que ia ser algo simples, rápido e repetitivo. Porém, acabei por ficar agarrado às poucas linhas texto que eram soltas por cada bicho e a querer perceber os pormenores narrativos por detrás de certos objectos ou eventos, caindo na teia da aranha com total suavidade. Falei em linear no início do texto, e esta experiência é tudo menos uma viagem linear pelos burgos dos insectos ou cantos devastados pelo tempo.

Hollow Knight é um tratado da alma, da percepção de como sonhos e desejos têm consequências, de como eventos catastróficos podem ser a fundação para renovação e de que todos os pormenores contam. Para mim foi uma lição de como não posso julgar um jogo pela sua “capa”, especialmente quando o protagonista é um insectozinho minúsculo e com um ar que nem o calor do Algarve o faria suar ou demover da sua demanda.

Fiquem com um dos momentos que marcou a minha viagem pelo infindável mundo de Hollow Knight.