O mercado dos videojogos está numa fase perniciosa. Permitam-me, antes de mais, distribuir algumas culpas aos terríveis meses que temos tido, e àqueles que acredito ainda termos pela frente.
Os videojogos não são uma indústria madura, pela sua longevidade. Quando olhamos para outros mercados, como a literatura, o cinema, ou mesmo a Banda-Desenhada, percebemos dores de crescimento que identificamos agora neste mercado que nos é próximo.
O primeiro problema, para o mal ou para o bem, é que os videojogos geram demasiado dinheiro tendo em conta as décadas de idade que a indústria já tem. Com um avolumar desse montante a perceber-se ainda mais nos últimos anos, acredito que o apetecível bolo financeiro que os videojogos representam enquanto indústria de entretenimento mais lucrativa do século joga, na realidade, contra si.
É que dinheiro move dinheiro, e se por um lado isso tem significado um investimento em grandes e pequenos projectos, enriquecendo os videojogos, tem também atraído muitos agentes meramente movidos pelo doce aroma predatório do lucro.
Estamos também numa fase de passagem de testemunho, entre gerações. Muitos dos directores das grandes empresas de videojogos são elementos que começaram em posições de produção e que ao longo das décadas, com o crescimento das empresas e do mercado, foram, ascendendo a cargos de direcção. São criadores, mas sobretudo apaixonados por videojogos que foram direccionando as companhias nas últimas décadas. Salvo algumas excepções, obviamente.
Mas muitas empresas de videojogos são hoje corporações multi-milionárias, com volumes de negócio incomparáveis com o que se passava há vinte anos, mesmo acertando à inflação. E lentamente estes criadores-tornado-gestores que foram fazendo crescer o mercado estão lentamente a ser substituídos por elementos tipicamente corporativos, gestores que poderiam estar à frente de uma gigante criadora de consolas ou de uma empresa de automóveis. Este comentário não atesta, de forma alguma, à falta de profissionalismo destes novos gestores “outsiders” que vão penetrando na indústria, e liderando-a. Acredito que um excelente gestor sê-lo-á numa grande diversidade de indústrias em que possa trabalhar.
Mas os videojogos, mais do que uma indústria, são, e serão sempre, objectos culturais e artísticos, carecendo de uma sensibilidade e uma paixão pelo metiê que torna as decisões extraordinariamente sensíveis.
Um sintoma disto? Suicide Squad: Kill the Justice League.
Acredito ser perfeitamente consensual que a Rocksteady ajudou a limar as arestas dos jogos open world, estabelecendo um padrão de qualidade sem o qual não teríamos a Insomniac a desenvolver jogos como os da série Marvel’s Spider-Man.
A experiência e perícia que o estúdio londrino demonstraram na série Batman: Arkham são indiscutíveis, resultando em jogos igualmente aclamados e bem-sucedidos comercialmente.
Ter a sua casa mãe, a Warner Bros. Games a redireccionar o estúdio para um third person shooter game as a service é uma prova do desequilíbrio corporativo do qual falava antes, e que se alarga à fraca gestão de expectativas da indústria, contribuindo para milhares de despedimentos.
Os anos de 2020 e 2021 são anos atípicos. Apesar de pertencerem ao nosso passado recente e de as nossas memórias os colocarem com uma percepção de que aconteceram há uma década, a realidade é que o efeito negativo que a pandemia teve foi contrabalançado pelo crescimento e investimento nos videojogos. Com milhões de pessoas confinadas que mantiveram os seus empregos, subitamente os videojogos tiveram a capacidade de ser a resposta de entretenimento para a maioria delas. Contrariando as melhores projecções globais das empresas de videojogos, a realidade é que se vendeu muito. Seja hardware, períféricos, consolas, videojogos físicos e digitais, subscrições e season passes. O boost a todo o mercado foi óbvio, e os números que muitos game as service já tinham mas que foram amplificados na vaga que disparou toda a indústria conduziu a muitos boards a realinharem agulhas para atacar esse segmento o quanto antes.
Pensar que as margens anormais de crescimento de 2020 e 2021 conseguiriam permanecer com um mundo pós-pandemia ou é um exercício de ignorância ou de cretinice. O contexto para o aumento de consumo de videojogos explicava-se numa equação simples entre o superávit de dinheiro disponível e a correlação com tempo para dedicar aos jogos, a dividir pela impossibilidade de conviver fora de casa e ter uma vida normal.
A grande maioria de empresas vendeu esse sonho a accionistas e a venture capitalists: estas margens existem e são para ficar, os videojogos passaram hipoteticamente da indústria de entretenimento mais lucrativa para ser também um El Dorado do investimento, com perspectivas de lucro superiores à da especulação imobiliária.
Mas a pandemia felizmente foi controlada e faz agora parte do nosso passado.
O consumo global de videojogos caiu quando comparado com períodos homólogos de 2020 e 2021, mas com margens de crescimento alinhados com os tempos pré-pandémicos, com um desvio compreensível pela subida de preços e crise económica causada pela invasão da Ucrânia. Mesmo com todo este contexto económico global negativo, consomem-se mais videojogos em termos de valor bruto do que em 2019, mas, como qualquer pessoa sensata esperaria, as margens de crescimento da pandemia têm um contexto específico, identificável, e sem justificação real de serem transpostas quando as restrições se levantassem.
Mas ainda assim a utopia financeira foi sendo vendida, e os resultados, sem surpresas, não chegaram. O que nos leva ao reequilibrar de estruturas corporativas em final de ano fiscal através da solução mais desumana, mas habitualmente a mais eficaz para os decisores nas torres de marfim: cortar com a força laboral. Força laboral essa que não é responsável pelo incumprimento das metas irrealistas estabelecidas pelas suas cúpulas, mas que são, como sempre, o elo mais fraco da cadeia.
Somemos a essas projecções utópicas uma sensação de cata-vento que levou às administrações das empresas a lançarem instruções pela cadeia hierárquica que o plano de futuro é encontrar o próximo Fortnite ou Call of Duty mobile, abraçando o modelo game as a service a todo o custo.
Essa cegueira financeira não sustentada na sensibilidade de cargos directivos de olharem para os videojogos como algo mais como videojogos leva-nos a casos aberrantes de vermos estúdios AAA com um excelente currículo em sucessos comerciais e críticos sucessivos a serem obrigados a mudar e a criar jogos GaaS para apaziguar a vontade das suas direcções. Os resultados, estão à vista. Seja a Arkane com Redfall, ou agora a Rocksteady com Suicide Squad: Kill the Justice League.
Não utilizar um estúdio e um conjunto de criadores e trabalhadores pelo que de melhor têm para dar é um sintoma desta infiltração de outsiders à própria indústria, que sonham encontrar o próximo filão dourado que lhes vá aumentar o bónus anual.
A ironia? É que ao mesmo tempo que vemos estes faux pas que trazem verdadeiras aberrações de videojogos para o mercado, prejudicando laboral e emocionalmente os estúdios envolvidos, vamos vendo que especialmente no mercado AAA, onde o marketing é forte, os últimos anos têm provado que existe um segredo à vista de todos para bons resultados financeiros: lançar bons jogos. É especialmente irónico no caso da Warner Bros. Games que obrigou um estúdio com a mestria da Rocksteady a criar um GaaS nas pisadas dos Avengers, quando quase garantidamente uma boa experiência em mundo aberto single player como a que o estúdio londrino sabe fazer seria mais um sucesso tremendo, no seguimento de outros sucessos. Basta olharem para dentro da sua própria casa: Hogwarts Legacy é um dos jogos que melhor vendeu nos últimos anos para a gigante de media americana. E não é um GaaS. Como não o é Marvel’s Spider-Man 2, The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom ou Star Wars Jedi: Survivor. Todos jogos que figuram na lista de jogos mais vendidos de 2023, e aclamados pela crítica.
Há anos que digo que poucas coisas me irritam mais do que a falta de cumprimento de potencial, e a Rocksteady acabou de ser prova disso, mas não por culpa própria. Não ter este estúdio a trabalhar na área que ajudaram a definir e onde são exímios é o equivalente a ter o Cristiano Ronaldo na equipa mas achar que ele fica bem a guarda-redes porque há aí uma grande procura comercial de guardiães de balizas.
Suicide Squad: Kill the Justice League é um jogo sofrível, onde toda a jogabilidade é um tutorial martelado de 10 horas para preparar os jogadores para os Season Pass que aí vêm. Ali pelo meio vamos tendo um vislumbre ténue nas cut scenes da qualidade da Rocksteady enquanto contadores de histórias a vir ao de cima, mas que timidamente regressam à mediania de um third person shooter banal e confuso, que cairá no esquecimento muito em breve.