Numa manhã de dor de alma, valham-me algumas mudanças positivas que vamos observando na indústria dos videojogos. Uma delas, e que ainda no sábado discutia com um amigo de quase 3 décadas, é a improbabilidade estatística de um jogo brilhante como Baldur’s Gate III ter reaberto as portas de um género que parecia circundado a um grupo de pessoas que cresceram com pen and paper RPGs, levando essa experiência a novos públicos.
É neste clima de conquista dos RPGs por turnos mais tradicionais e predominantemente narrativos que recebemos The Thaumaturge, o novo jogo do estúdio polaco Fool’s Theory, cuja experiência no género – agora ainda mais cimentada por este jogo – justifica a escolha depositada em si na tarefa de refazer o primeiro Witcher.
As semelhanças conceptuais dos protagonistas entre The Thaumaturge e The Witcher são grandes, na forma como ambos os personagens titulares têm capacidades herdadas (ou adquiridas) para enfrentar ameaças sobrenaturais.
Em The Thaumaturge vivemos o papel de Wiktor Szulski, o titular taumaturgo que tem o poder de ver e interagir com Salutors, entidades metafísicas que coabituam o nosso mundo e que se sentem atraídas pelas Falhas dos humanos, possuindo-os e amplificando-as. A sua sensibilidade e percepção especiais permitem-lhe aferir o que alguém sentiu ao interagir com determinado objecto, uma psicometria que os leitores mais velhos da Marvel conseguem facilmente corresponder a um dos poderes do grande Longshot.
No mundo sujo e negro de Varsóvia de 1905, o turbilhão geopolítico intromete-se na vida de Szulski, que regressa à sua cidade-natal. Consigo traz não só as suas habilidades mas também a sua Falha bem identificada, o seu Orgulho. Se assinalei aquelas duas palavras com capitulares não é por uma tendência bacoca a la escritor de cordel de redes sociais, mas porque são conceitos identificados em The Thaumaturge como mecânica e narrativamente importantes.
As Falhas – esses elementos que poderíamos quase enunciar como pecados – são a porta de entrada e o meio de exploração das fragilidades humanas por parte dos Salutors, e o nosso protagonista, apesar dos poderes sobrenaturais, não é excepção.
A forma como vemos o seu Orgulho a condicionar as nossas respostas surge aqui na tradição de “alinhamentos” de muitos RPGs clássicos: perfeitamente indicados como a resposta que de alguma forma terá consequências por termos Wiktor a ceder à sua Falha interna, e potencialmente à forma como o seu Salutor poderá instrumentalizar essa cedência.
Com um ciclo de passagem de horas, este jogo amplamente investigativo leva-nos a poder “esperar”, avançando o relógio, para que consigamos assistir a eventos (e encontrar personagens diferentes) dependendo da hora do dia.
Visto que a grande parte do nosso tempo de jogo será passado a seguir a intuição especial de Wiktor, a perseguir pistas, a investigar objectos e a dialogar com pessoas, The Thaumaturge é sobretudo direccionado para jogadores que querem uma história coesa. É, aliás, a qualidade da escrita de The Thaumaturge um dos seus maiores pontos: uma ode aos maravilhosos RPGs por turnos tradicionais que todos jogámos.
O combate acaba por ser um mal menor em todo o jogo, um momento de acção por turnos que promete ser a quebra narrativa que poderá impedir um segmento de jogadores de se aborrecer com um jogo de tanta investigação paranormal. Mas este acaba também por ser o momento menos interessante de todo o jogo, dada a sua simplicidade e falta de profundidade.
O nosso controlo de acções é bipartido entre a forma de Wiktor agir, mas também o do seu Salutor, sendo que as acções têm tempos diferentes para acontecer, com a barra superior a mostrar-nos no decorrer das rondas quando é que nós e os nossos adversários agimos, permitindo-nos um planeamento para o elemento mais “diferente” deste combate.
Cada inimigo tem um indicador de concentração, um conjunto de cristais que podemos ir quebrando até o exaurir por completo, deixando-o vulnerável a ataques extraordinariamente fortes.
Apesar de em quase tudo este The Thaumaturge ser um RPG clássico, a sua ausência de progressão de níveis acaba por nivelar o combate a momentos que não são especialmente interessantes, à excepção das boss fights, mas são também a forma de criar algum dinamismo num jogo predominantemente narrativo.
Vale a The Thaumaturge o seu maravilhoso worldbuilding visual e narrativo, numa história negra que vale a pena conhecer e deixar que as horas passem, enquanto percorremos as ruas de Varsóvia para chegar à raiz das vulnerabilidades de cada humano afectado por um Salutor.