Há pessoas que mudaram a História do mundo após a sua passagem, e é impensável refutá-lo. É claro que na grande maioria pensamos sempre naqueles que mudaram o mundo da pior forma, e muito menos são as vezes em que paramos para pensar em como tudo era e como ficou, após a passagem de alguém pelo nosso planeta. Akira Toriyama é um dos bons exemplos, um artista cujo trabalho é tão fulcral que alterou por completo a arte e a cultura pop, massificando os manga e por extensão os anime por todo o globo. A influência que o seu traço criou abriu portas para gerações de artistas, tornando a estética nipónica uma linguagem utilizada e amada por artistas e consumidores de todo o mundo.

Toriyama morreu no meu dia de anos, aos 68 anos. Ver estas figuras revolucionárias pela positiva faleceram tem sempre um nível de descrença, sentimos que elas, como as suas obras e acções, são eternas.

Espero que o grande mestre possa ter contactado de fio a pavio com o que a ILCA conseguiu traduzir do seu curto manga para videojogo, expandindo a história original em simultâneo com a série ONA disponível no nosso território na Disney+.

É que antes de querer entrar em discussões mecânicas e rítmicas sobre este open world action game, tenho de dizer que Toriyama ainda pôde ver aquilo que considero ser a derradeira tradução do seu reconhecível traço em ambiente tridimensional. A tradução do seu traço para o cel-shading no jogo é nada menos que perfeita, fazendo de cada momento e cada personagem o equivalente a um manga animado – parece – que pela mão do próprio Toriyama, com os tracejados e sombras adicionadas a fazerem-me sentir que os personagens saltaram das páginas do manga que li há cerca de 12 anos directamente para o ecrã do meu PC.

Com os muitos jogos – especialmente de Dragon Ball – mas também de outras séries de videojogos criadas a partir do traço de Toriyama, conseguimos ver ao longo das décadas a aproximação progressiva ao estilo do mangaka. Como disse, Sand Land, sendo aqui adaptada 24 anos após o lançamento da BD original, é a derradeira tradução, utilizando o cel-shading com maestria, criando um ambiente visualmente deslumbrante que se destaca pela sua cor e proximidade com o manga. O jogo mantém constante a sensação de estarmos dentro do manga original, mas colorido, com os personagens que parecem desenhados à mão e os cenários que, apesar de serem digitais, têm a qualidade táctil de uma ilustração de Toriyama.

Apesar do jogo ser um mundo aberto, não se perde nos vícios de outras empresas, e não o polvilha com um chorrilho de distrações. Por outro lado quase que sinto que foi na ponta oposta: não é só por a história na sua primeira metade ser passada num deserto que o jogo tem de ter uma sensação desértica. 

Valem-nos os muitos fast travels que vamos desbloqueando para que possamos atravessar o enorme mundo deste jogo de forma mais célere, ainda que tenhamos de calcorrear muito, muitos quilómetros digitais de missão em missão. Esta monotonia do cenário e repetição de inimigos é ainda mais notória nas missões de história passadas dentro dos destroços de naves gigantes ou na exploração de ruínas opcionais. Em termos de level design sentimos que caímos num loop interminável de constantes déja vus.

Para fechar o ciclo de elementos menos bons de Sand Land, é preciso falar do combate corpo a corpo que é notoriamente superficial e insípido (para além de lento), e está muitos furos abaixo do combate de veículos. Os controlos de combate são simples demais e falta a complexidade que se espera de um jogo de acção da Bandai Namco, especialmente se nos lembrarmos que a ILCA ainda há pouco tempo nos brindou com One Piece Odyssey

Espero não estar a induzir-vos em erro, ou a pintar um quadro negro por ter-me focado nos pontos menos positivos de Sand Land, é que estaria a ser tremendamente injusto. Este jogo é uma das minhas grandes surpresas do ano e a sua qualidade é boa o suficiente para estabelecer Sand Land como um IP reconhecível para além da mini-série original. 

Sand Land na realidade brilha em vários aspectos, e combate de veículos e a narrativa são, sem dúvida, os pontos altos. As intensas batalhas de veículos, cada uma mais emocionante que a anterior. A customização dos veículos adiciona uma camada estratégica ao jogo, tornando cada batalha única e desafiadora, e incorporando elementos de RPG ao jogo que vão além da atribuição de pontos ao nosso protagonista Beelzebub e aos seus companheiros. Apesar de desbloquearmos diversos veículos ao longo do jogo que nos permitem alcançar pontos distintos do mapa, admito que passei a quase totalidade do jogo com o tanque, mesmo depois de desbloquear o mecha. 

O combate no tanque é tão divertido, especialmente por podermos alterar o tipo de canhões e metralhadoras que usamos, pensar nas recargas de munições, e nas limitações de locomoção das suas lagartas, que sinto que seria capaz de jogar um jogo de acção apenas focado neste tipo de combate. O que por um lado seria quase cumprir a visão inicial de Toriyama, que escreveu e publicou Sand Land após ficar entusiasmado com uns concepts iniciais de tanques arredondados ao seu estilo, o que o motivou a criar um universo “à sua volta”.

A história é outro destaque importante, não só o enredo mas os diálogos humorísticos como só Toriyama conseguia criar. A narrativa rica em detalhes e profundamente envolvente leva-nos por uma aventura emocional cheia de surpresas, sem nunca perdemos o sorriso da nossa cara. O elenco, com as suas personalidades distintas e memoráveis, contribuem para uma experiência memorável. A influência do Mestre é evidente na profundidade e o carisma que cada personagem traz para a história, e dos heróis, aos NPCs, passando pelos vilões, todos trazem aquele charme memorável que vivemos no mítico Dragon Ball original.

Sand Land é uma brilhante homenagem a um dos grandes autores da História, e permitiu expandir a história original e levá-la a um público global ainda mais vasto. Com alguns elementos mais fracos na jogabilidade, é mesmo o combate veicular que eleva o patamar deste open world para outras paragens. O que a ILCA é uma tradução tão fiel da estética e do universo de Toriyama que só imagino o que seria uma adaptação à história de aventura de Dragon Ball com esta abordagem.

E aproveito para terminar este artigo aconselhando todos os fãs de Toriyama a jogarem-no, mesmo que em jeito de homenagem ao autor japonês recém-falecido. 

Em jeito de vénia: obrigado por tudo, Mestre.