A semana passada o Filipe Urriça escreveu na sua newsletter (de leitura obrigatória) sobre a sua (e por extensão, a nossa) realidade de saltitar o seu tempo entre diversos media, entre os videojogos, as séries, a música e os livros. Este não poderia ser um mais perfeito espelho daquilo que é a minha realidade, com a minha mesinha-de-cabeceira cheia de livros, mas com um iPad ao lado, e por vezes o Steam Deck que pernoita no meu quarto.
O recém-criado Clube de Leitura do Split-Chicken levou-me de volta a dois dos autores da minha vida, Saramago, e Pessoa, com a minha segunda releitura d’O Ano da Morte de Ricardo Reis, magnífica obra que começa quase in media res após o funeral do poeta lisboeta. A referência no título é uma abraço pessoano.
E eis que me encontro, entre as viagens videolúdicas dos metroidvanias como este Noreya: The Gold Project, do estúdio Dreamirl, e o ritmo único de Saramago, sem perdas entre eles.
Mas saltitemos das páginas de um livro de uma edição impressa em 1985 para este indie francês que se quer destacar no género com o seu combate desafiante e um trabalho de pixel art de nos deixar boquiabertos. O enredo colocan-nos na pele de Kali, uma guerreira determinada a desvendar a verdade por trás da subjugação de seu povo sob o jugo de um deus cruel. Apesar do enredo não ser, para mim, um dos seus selling points, Noreya consegue porém distinguir-se pela suas escolhas de evolução de personagem e ramificação de caminhos, oferecendo-nos uma experiência metroidvania única.
Esta árvore de habilidades ramificada entre duas divindades – o Deus da Ganância e o Deus da Luz – trazem-nos mudanças significativas à jogabilidades. Kali, e nós, por extensão, teremos de decidir a nossa aliança, entre o Deus da Ganância, responsável por transformar a protagonista numa espécie de sombra, ou o Deus da Luz. Com pontos limitados para distribuir, somos obrigados a tomar decisões estratégicas que irão moldar não apenas as habilidades de Kali, mas também a própria experiência de jogo, tornando toda a exploração deste mundo menos linear e garantindo que cada playthrough seja única.
A escolha do deus a seguir não afeta apenas as habilidades de Kali, mas também altera o próprio mundo ao seu redor, com os cenários e os desafios à adaptarem-se à nossa lealdade à divindade escolhida, criando uma dinâmica onde cada decisão tem consequências visíveis e palpáveis.
O combate em Noreya: The Gold Project é intencionalmente desafiante, remetendo aos clássicos do género, onde ausência de movimentos modernos como dodge ou roll, comuns em muitos jogos actuais, exigem que adoptemos uma abordagem mais estratégica e compassada. Atacar e imediatamente recuar para evitar danos, algo que todos crescemos a fazer em jogos dos anos 1980 e 1990 está aqui presente, e evoca um estilo de jogo que homenageia os jogos de outrora. Porém, penso que essa escolha de design possa ser bastante frustrante para alguns jogadores mais jovens que cresceram com parry, dodge e roll como linguagem mecânica estabelecida.
A experiência musical em Noreya é igualmente notável, com a sua banda sonora composta por Sarys e MisterMV a complementarem na perfeição a atmosfera do jogo, e estão no mesmo patamar da excelente qualidade artística visual que a detalhada pixel art aqui nos traz.
Outro grande destaque de Noreya, para além das sequências de quase puzzle platforming, são a suas 12 boss battles, cada uma meticulosamente projectada para testar as nossas habilidades e controlo da protaongista que controlamos com as nossas escolhas e decisões na árvore de habilidades. Para além disso, a ramificação e decisão de aliança entre os deuses leva à presença de vários finais possíveis, incentivando a exploração e a rejogabilidade, permitindo que descubramos novas nuances narrativas.
Noreya: The Gold Project é um excelente caso de um objecto revivalista que combina a nostalgia dos jogos de antigamente com uma profundidade moderna de escolhas e consequências. A aventura que vivemos na pele de Kali é rica em desafios e decisões com verdadeiro impacto, que é complementada por uma direcção de arte meticulosamente elaborada. Este é um jogo obrigatório para os fãs de metroidvanias, com Noreya a trazer-nos uma experiência menos linear do que a que estamos habituados a degustar.