Ao contrário do que se defende, vejo algo de muito positivo em jogos que nos absorvem de tal maneira que perdemos por completo a noção da passagem do tempo. E sem sinais de adição patológica, diria que é sobretudo, numa vivência normal, um excelente refúgio para nos abstrairmos de problemas da nossa vida, encontrando em mundos virtuais um escape salutar.

Há muitos géneros que parecem pré-definidos para este objectivo – e quem sabe se serão prescritos num futuro próximo, como elementos terapêuticos? – mas poucos terão esta capacidade como os chamados factory games. Um subgénero dos management games que nos coloca o objectivo de optimizar cadeias de produção para a expansão comercial do nosso mundo, por exemplo. Ou casos como Shapez 2, a sequela do brilhante indie de 2020 que pegou no género e adicionou-lhe um elemento abstracto de criação de formas, sem a componente financeira associada, numa espécie de cruzamento com puzzle game.

Shapez 2 eleva tudo o que de brilhante que o seu antecessor fez, estabelecendo a série como uma das principais do género. E é curioso que transpondo do mundo real, onde a produção em massa e a optimização são rainha, este jogo conseguir destacar-se por ter uma abordagem minimalista. Ignora elementos fulcrais do género, como economias complicadas ou inimigos constantes, substituindo o seu desafio por um universo de formas abstractas e de puro engenho de produção fabril. É um jogo que celebra a arte da engenharia, onde cada forma que criamos é uma conquista da nossa optimização de esteiras e máquinas industriais.

Shapez 2 gira em torno da manipulação de formas geométricas abstractas, através de um objetivo simples: movimentar, rodar, cortar, empilhar, combinar e pintar formas para responder aos objectivos específicos e pedidos do enigmático e silencioso vácuo no centro do mapa. 

A simplicidade das mecânicas esconde uma profundidade estratégica brutal: cada forma que precisamos de produzir envolve uma série de interacções – cortes específicos, combinações complexas, empilhamentos de formas e de semi-formas, e até pintura destas em cores específicas. Embora não exista uma pressão directa do tempo, a escala e complexidade das tarefas aumenta com a nossa progressão no jogo, exigindo um grande planeamento, organização do espaço e optimização constante dos nossos sistemas de produção.

Uma das maiores forças de Shapez 2 é a liberdade que o jogo nos oferece. Não há custos monetários para construir qualquer elemento da nossa “fábrica” cósmica, o que remove uma barreira comum aos factory games. Os recursos não são um elemento mecânico. O único recurso que temos é o mais valioso da nossa vida: o tempo real necessário para criar as formas pedidas, e o tempo de espera para entregar as centenas ou até milhares de unidades necessárias, obrigando-nos a concentrar-nos inteiramente na optimização e na eficiência da nossa fábrica.

Estas missões e tarefas, ainda que morosas, vão dotar-nos de pontos de pesquisa que nos vai permitir não só melhorar a eficácia dos nossos componentes fabris, como a ter acesso a maquinaria mais complexa e avançada. 

Somemos a isso a possibilidade de fazer copy-paste das nossas construções, e até mesmo de salvá-las para uso futuro, agilizando alguns processos de criação e optimização. Podemos ter criado sistemas altamente eficientes que podem assim ser reutilizados em diferentes partes do mapa ou mesmo em diferentes momentos do jogo. É esta flexibilidade que transforma Shapez 2 num verdadeiro sandbox de produção, onde podemos experimentar a nosso bel-prazer e ajustar as nossas criações até alcançarmos a perfeita optimização da nossa cadeia de produção.

A rejogabilidade de Shapez 2 é virtualmente infinita, mesmo após terminarmos todas as tarefas e completarmos todos os objectivos, o desafio evolui de forma curiosa, e quando todas as metas são alcançadas o jogo começa a gerar formas aleatórias e ainda mais complexas para produzirmos. E é nesta variedade onde Shapez 2 realmente brilha: obrigando-nos a testar, experimentar e optimizar cada cadeia de produção visto que cada nova forma é um enigma, e cada solução é a resposta para um quebra-cabeças.

Shapez 2 é brilhante na sua simplicidade, profundidade e abstracção. Ao eliminar os recursos financeiros, inimigos e pressões externas, o jogo coloca o foco exactamente onde ele deve estar: na criação e na optimização de sistemas de produção. É uma experiência imperdível e relaxante e, ao mesmo tempo, intelectualmente estimulante, onde cada nova forma criada é uma solução de problema lógico que nos é imposto. Para os dias de hoje tem algo de diferente: a capacidade de podermos jogar ao nosso próprio ritmo, perdendo o tempo que quisermos para chegar a cada objectivo.