Algures no final da primeira década deste milénio convencionou-se a ideia de que os consumidores da PlayStation queriam apenas produções de acção, com experiências cada vez mais próximas da linguagem cinematográfica, circunscrevendo o seu carril de produção numa direcção só. Reconheço esta falácia por eu ter sido também convencido de tal, e em algum momento ter absorvido e repetido este argumento. 

Um contra-argumento fácil de me dirigirem é que os números dos últimos 15 anos comprovam precisamente isso. Que as muitas milhões de unidades digitais e físicas vendidas ditam a preferência dos consumidores por jogos de acção em mundo aberto, de qualidade. E não o refuto. Só sinto que é um argumento redutor que o Astro Bot veio rebater e relembrar-nos que as centenas de milhões de consolas, jogos, acessórios e periféricos vendidos sob a marca PlayStation estão assentes em muitos degraus distintos, em alguns momentos mais experimentais e certamente mais familiares.

Outra falácia que se alimenta desta é precisamente a de que esse espírito mais familiar é pertença quase exclusiva da Nintendo, quando uma pequena viagem dos anos 1990 até à década passada nos provam exactamente do inverso. Antes de todas estas tendências surgirem, a conquista doméstica da jogada arriscada da Sony de se aventurar no entretenimento videolúdico teve como pedras de suporte e motores de sucesso e crescimento um conjunto de séries exclusivas que alimentaram o seu portfólio.

E se Final Fantasy VII é o ponto de viragem corporativo de sucesso tanto para a PlayStation mas também para a então denominada Squaresoft, não podemos esquecer que para o grande público que transformou a primeira PlayStation numa das consolas mais vendidas de sempre, os argumentos para a sua aquisição residiam noutro tipo de experiências. Foram os jogos de plataformas tridimensionais exclusivos, mais familiares, que ajudaram a estabelecer a marca para além do público mais (dito) hardcore. Crash Bandicoot e Spyro, the Dragon eram presença obrigatória em muitas das casas que visitei e que possuíam uma consola Sony, numa abordagem mais familiar que contava também com outro exclusivo, como Klonoa, mas também multi-plataformas como Croc e Gex

Esta presença familiar faz parte da identidade da PlayStation, e em geração após geração temos provas disso. E se todo o mercado fosse na realidade baseado num guião escrito por uma entidade cósmica, perceberia o tremendo timing de termos numa semana o lançamento de um jogo de pendor familiar, e que é para mim o grande concorrente a melhor do ano, precedido dias antes por um dos maiores faux pas que vi a Sony ter, com o encerramento do Concord, semanas após chegar às plataformas. 

É como se Astro Bot, com toda a qualidade do qual já falarei mais à frente, servisse para provar interna e externamente que a falácia que foi sendo repetida, remastigada e revendida das preferências dos consumidores, até ao ponto de uma aposta nas tendências do mercado e na esperança dos símbolos dourados dos jogos game as a service. Se Concord prova a desconexão com os videojogos entre administradores e dirigentes das grandes empresas dos videojogos, e que têm motivado este turbilhão que todos vivemos, Astro Bot é, e perdoem-me a metáfora, como um grande dedo do meio erguido bem alto aos grandes decisores das maiores corporações da nosso indústria. Um dedo do meio que pode, e deve ser erguido internamente na Sony. Sem saber notas de reviews, projecções ou intenções de vendas, arrisco-me a apostar já aqui que o grande concorrente a maior sucesso comercial e crítico de 2024 da PlayStation (e possivelmente de todo o mercado neste último trimestre) não será um action open world cinematográfico com orçamentos que envergonham Hollywood, ou jogos multiplayer que sonham em ser o próximo filão dourado de GAS, mas sim um brilhante platformer tridimensional, que transpira a paixão por videojogos em cada pixel e que é ao mesmo tempo uma homenagem sentida, respeitosa, e inspirada à História da marca PlayStation.

Tudo em Astro Bot serve para reflexão. Entre pensarmos na Team ASOBI, que foi criada como parte dos agora defuntos Japan Studios, e na forma como é esta equipa quem vem entregar o jogo de plataformas mais criativo e mecanicamente mais próximo do patamar de um Mario em 3D. E digo-o com plena consciência do que afirmo, do centro da minha proximidade, influência e respeito pela equipa de Miyamoto e os seus jogos de Mario. Digo-o não de ânimo leve: o brilhantismo de todos os momentos e sequências de Astro Bot fez-me por diversas vezes comentar aqui com a minha família que encontrámos dentro dos SIE Studios um conjunto de criadores – também eles nipónicos curiosamente – e que rivalizam em termos de inventividade e de qualidade com o que as equipas de Quioto têm feito no género.

Já muito se poderia esperar quando ainda há quatro anos, aquilo que poderia ser apenas uma espécie de tech demo de uma consola de nova geração se demonstrou de forma unânime e consensual como um dos melhores jogos exclusivos da PS5. Astro’s Playroom era e é tão bom que até hoje só lhe encontro uma crítica: o facto de ser curto, e o problema que nos criou ao revelar a potencialidade do mundo de Astro Bot e de nos deixar sequiosos por mais.

Em termos de game design, andar no fio da navalha entre tornar uma experiência um mero museu e rivalizar com a Nintendo em termos de inventividade mecânica é o equivalente profissional a atravessar a corda de um acrobata, sem rede. Mas muitas das ideias trazidas em Playroom já demonstravam que era possível pegar num simpático protagonista como este e dotá-lo de criativas ferramentas para atravessar brilhantes momentos jogáveis de level e game design. 

Astro Bot é isso mesmo, e apelidá-lo de Super Mario Galaxy da PlayStation não é, de todo, uma crítica, ou uma comparação de menor. É na realidade sentá-lo com justiça no panteão onde os melhores do género se sentem, e fazê-lo por mérito da equipa da ASOBI.

Com um hub galático dividido entre 5 galáxias (mais uma sexta), cada uma delas divididas em pequenos planetas que são, na realidade, níveis, mais um planeta central que serve de base ao nosso personagem, há muita criatividade na elaboração de cada pormenor deste jogo.

Os planetas, para além de visual e auditivamente brilhantes, são exímias peças de level design onde os games designers da ASOBI brincaram e experimentaram com diversos power-ups, conseguindo aquilo que tantas vezes sentimos em jogos da Nintendo: conseguir manter cada mecânica fresca, utilizando-a apenas o tempo suficiente para que nunca nos soe repetitiva. Somando a isso uma profusão de diversos poderes diferentes, que vão desde uma galinha propulsora na vertical, um bulldog propulsor na horizontal, entre muitos poderes aos quais se juntam os power-ups que encaro como “especiais”, de final de galáxia, onde Astro Bot encarna um personagem ou uma série da História da PlayStation. Seja a empunhar o machado de Kratos, com um nível concebido com mecânicas a si ajustadas, ou de armas em punho qual Nathan Drake robótico e simpático, está mesclagem de séries conhecidas é mais do que um easter egg, é uma forma natural, orgânica, de expandir o experimentalismo por algo que é muito mais do que um mero museu de uma plataforma.

Depois de algumas horas conseguimos completar a 100% o jogo, ou seja, apanhámos todos os 301 bots (sendo que muitos destes, os VIPs, são versões “astrobóticas” de personagens e elementos de dezenas de jogos que compuseram a história da marca, e que são em si mesmo um exercício de reconhecimento já que não são identificados quanto à sua origem), mas também todas as peças de puzzle (que são a forma de desbloquear novas instalações no nosso planeta central). Com a mecânica de gacha aqui presente de regresso, coleccionámos todas as pinturas de personalização do Dual Sense, todos os itens pessoais dos bots VIPs, assim como todas as roupas para o nosso Astro Bot, vestindo-o como protagonistas clássicos da Sony, que vão do Parappa ao Ratchet.

São dezenas de níveis, puzzles, coleccionáveis e áreas secretas em que todos os momentos foram meticulosamente tecidos para que nada soe artificial: todos os momentos foram desenhados com a intenção dos seus autores, transmitindo-nos a sua criatividade e paixão a cada instante.

Aqui em casa jogámo-lo em família, numa partilha de gerações. E foi interessante encontrarmos em conjunto todos os Bots e pequenos easter eggs da História da PS e eu falar-lhes daqueles jogos que eram referenciados, e do impacto que eles tiveram em mim. Um exercício de revisita às minhas memórias pessoais mas também àquelas que me fizeram o jogador e a pessoa que sou hoje.

Esta visita brilhantemente criativa e museológica criou um efeito curioso nos meus filhos: a vontade de eles mesmos quererem conhecer algumas daquelas séries que ali foram referidas, muitas delas esquecidas pelos decisores das empresas respectivas muito antes de eles nascerem. Aproveitando assim, o acesso à subscrição do PS Plus Premium para conhecerem eles mesmos o Ape Escape, ou revisitarem jogos que já tinham jogado comigo, como Sly e até Patapon.

Como disse, a qualidade visual de Astro Bot está no patamar do que esperaríamos de uma produção first party da Sony, mas seria injusto não referir o exímio trabalho de sound design, e a forma como ele foi aproveitado não só através da televisão mas também na inclusão e maximização das características únicas do Dual Sense.

Tenho que combater o meu cinismo e a minha desilusão generalizada para dar espaço para uma vaga de esperança que amanhã, quando Astro Bot chegar às lojas, que a sua brilhante qualidade se traduza em vendas. E desejo-o não porque tenha comissão nas suas vendas, mas porque infelizmente o dinheiro é a única palavra compreensível pelas estruturas dirigentes. Que ele se torne, nestes tempos conturbados e incertos, a prova de que um excelente single player, de criatividade estelar, auto-contido, e familiar, pode ser a resposta que uma empresa que tem apostado em diversos cavalos errados precisa. Que se permita à Team ASOBI desenhar-nos um sorriso no rosto com esta série, e que nos surpreenda, lançamento após lançamento, com a sua originalidade. 

Eu, como Fernando Pessoa nas suas últimas palavras, também não sei o que o amanhã trará. Mas tenho pelo menos uma certeza: a pouco mais de dois meses de 2024 terminar, Astro Bot é de longe o melhor jogo que joguei, num ano onde têm sido os jogos independentes a manter uma aura de positividade criativa no meio de uma tempestade de incertezas.