Continuo a sentir que o valor intrínseco dos videojogos enquanto veículos de divulgação cultural de conhecimento local em vias de se extinguir é hoje incomensurável. Seria possível, quiçá, que por alguma das minhas incursões literárias tropeçar pela cultura guanche, aquela que remete para os povos indígenas das Ilhas Canárias, e com elas as lendas associadas, durante os Descobrimentos, à mítica Ilha de S. Brandão. Um lugar mágico, escondido no Atlântico, que se acreditava ser a casa dos Deuses.
Mas não foi um documentário, um filme, um livro, ou uma história de BD a trazer-me esse contacto, a motivar-me a vontade de conhecer mais sobre este folclore geograficamente próximo de mim, e pertencente a uma zona que eu próprio já visitei. Foi, para ironia de muitos preconceituosos com o meio, um videojogo, quem me trouxe para esta lenda, pela mão de um grupo de recém-licenciados espanhóis que tiveram em Guayota o seu projecto de final de mestrado.
Guayota, desenvolvido pelo estúdio espanhol Team Delusion, é uma aventura de puzzle 3D que nos transporta para este mundo mítico ao largo das Ilhas Canárias, entrelaçando essas lendas com enigmas complexos e uma narrativa enraizada na mitologia local. Com uma tocha como a nossa principal ferramenta, enfrentamos uma série de desafios que giram em torno da manipulação de luz e da sombra, enquanto desvendamos os segredos de antigas lendas através da exploração de templos enigmáticos.
Ao longo da aventura somos convidados a descobrir a lendária história da Ilha de S. Brandão através de três grandes templos antigo, cada um construído em torno de uma forma específica de interacção com a luz. Numa das fases, por exemplo, devemos iluminar estátuas antigas utilizando cristais para direccionar o feixe de luz na direção correta. Já noutro puzzle somos forçados a correr contra o tempo, acendendo tochas que se apagam gradualmente, num ritmo distinto e muito mais tenso.
Apesar de nenhuma dessas mecânicas ser completamente nova no universo dos jogos de puzzle, e na realidade conseguirmos identificar praticamente todas as ideias oriundas de The Legend of Zelda, Guayota destaca-se, porém, pela crescente dificuldade dos seus puzzles. A Team Delusion conseguiu estruturar cada enigma de modo a encontrarmos um desafio cada vez mais complexo, e onde existe dualidade nos próprios puzzles. Muitos dos quebra-cabeças têm duas versões distintas: uma versão de “luz” e uma versão “escura”. A versão de “luz” é mais desafiante, introduzindo armadilhas e obstáculos que complicam a sua resolução, enquanto a versão “escura” é teoricamentea mais simples, com menos pressão sobre nós para a resolvermos.
Sem sentir, infelizmente, que Guayota se consiga evidenciar no mercado actual, nem pela sua direcção de arte que é meramente competente, diria que o verdadeiro ponto diversificador de Guayota está na sua narrativa, inspirada pelas antigas lendas do povo Guanche. Até o nome Guayota se refere a uma figura da mitologia canária, representando uma entidade maléfica que, segundo as crenças, habitava o vulcão Teide. É, para mim, esta ligação com o folclore das Canárias que nos proporciona uma imersão cultural única, enriquecendo o ambiente e a história por trás dos templos que exploramos.
Guayota, o primeiro jogo da Team Delusion, é uma experiência interessante para os amantes de jogos de aventura e puzzles tridimensionais, mas sobretudo pela sua homenagem à cultura e à mitologia das Ilhas Canárias, numa aventura onde as sombras e a luz existem sob o céu ensolarado deste arquipélago da Macaronésia.