Não acredito que se passaram agora 28 anos desde que joguei um dos jogos que mudaram a minha vida, e pouco mais de 10 anos e 4 meses desde que conheci e estive pela primeira vez (felizmente de muitas) com um dos meus heróis da indústria e autor desse mesmo título.
Não fosse o título deste artigo em que clicaram, e poderiam estar a atirar títulos de jogos e respectivos autores, passando eventualmente pelo Kojima e tendo uma reacção mnemónica com a palavra casa-de-banho, até eventualmente se lembrarem que esta última anedota aconteceu com o meu amigo Rui Parreira, e não comigo.
Falo, obviamente, de Charles Cecil, aliás, Charles Cecil MBE, condecorado pela falecida Rainha de Inglaterra pela sua contribuição à indústria dos videojogos e à cultura britânica. Conhecê-lo, e entrevistá-lo, foi uma das minhas maiores surpresas que tive na carreira.
E mantém-se actual o que disse na altura: há conversas que marcam mesmo a nossa vida. É possível que todos nós tenhamos dois ou três diálogos com pessoas aleatórias, inesperadas, mas intelectualmente sedutoras, e cujas palavras e troca de ideias nos gravaram uma impressão arrebatadora.
Conversar com o Charles Cecil, um dos marcos da História dos videojogos e autor de obras tão marcantes como Lure of the Temptress, Beneath a Steel Sky e Broken Sword é um desses casos. Apesar dos problemas técnicos que tive naquela que foi a minha primeira entrevista da Gamescom 2014, os 25 minutos de conversa intelectualmente honesta que o Charles teve comigo fazem-me um pequeno percurso histórico sobre as suas criações, e as da sua empresa, a Revolution Software.
É curioso que quase precisamente 10 anos depois desse momento eu esteja a revisitar na sua versão Broken Sword – Shadow of the Templars: Reforged um dos jogos que mais vezes joguei, e que mais imagens têm impressas na minha cabeça.
Fiel aos seus princípios e à honesta abertura que demonstra, tanto em público como em privado, agrada-me a candura de Cecil em “abrir o jogo” em termos de custos e viabilidade de um projecto destes.
Conhecendo o backlash que a mudança de direcção de arte de Monkey Island recebeu, Cecil sabia que o objectivo de uma versão remastered de um jogo manualmente ilustrado e animado passava por ser o mais fiel possível à estética original. Mas os cálculos eram simples, trazer para imagens de alta qualidade as cerca de 30000 sprites ilustradas e existentes em baixa resolução na versão original, significaria um investimento financeiro de mais de 600000€ apenas para escalar cada frame para a dimensão desejada.
A solução encontrada passou por pegar em todas as ilustrações originais do emblemático artista de Hollywood Eoghan Cahill, e alguns artistas contratados estiveram a “redesenhar” algumas centenas destas imagens à mão, criando keyframes das animações necessárias. Faltava o resto para manter a animação fluída: todo o resto da sequência que permitia a fluidez de cada acção.
É aí que Cecil encontra uma utilização que eu consigo respeitar para a IA generativa: não como ferramenta que se substitua à criatividade e ao talento humano, mas como instrumento que permite automação e poupança de recursos humanos em tarefas monótonas. Depois de testarem sem sucesso um modelo generativo treinado pela sua “vizinha” Universidade de York, a solução viria mesmo através de uma sugestão de um engenheiro da Nvidia, permitindo interpolar a animação entre keyframes.
Dadas as conhecidas limitações da tecnologia, Cecil e a sua reduzida equipa de artistas treinaram então os modelos generativos em animar apenas os corpos, deixando as mãos e cabeças para um trabalho manual dos artistas, que adicionaram alguns detalhes que a baixa resolução original não contemplava.
Ter um histórico da indústria a falar dos desafios técnicos e financeiros com esta transparência é apenas uma prova da pessoa, o autor e a inspiração que Cecil é, até na forma como encontrou uma solução artisticamente digna numa tecnologia que tanta gente com maior arcaboiço económico quer utilizar como substituto do toque criativo humano.
Da minha parte, Broken Sword – Shadow of the Templars: Reforged representa a 6a ou 7a vez que jogo um dos jogos da minha vida, mas agora com aquele emblemático voo inicial do corvo sobre o céu de Paris com detalhe e alta definição contemporâneos. Uma versão que diria definitiva e obrigatória, tanto para aqueles que foram marcados por ele há 28 anos, como aqueles que têm aqui a melhor oportunidade para o conhecer.