Num dos últimos episódios do Split-Chicken o tema foi a aparente falta de entusiasmo pelas novidades dos videojogos. Já falei várias vezes do tema de forma superficial, então aproveitei a boleia para tentar substanciar a minha opinião sobre o tema e, pasme-se, não tenho nada de especial para dizer.
NUNCA SE VENDEU TANTO JOGO
Parece um contrassenso, mas a verdade é que nunca se vendeu tanto jogo. Não falo concretamente do ano de 2024, mas desde 2020 que se deu um salto que se manteve muito mais alto do que esperava mesmo passados estes quatro anos. Tenho que admitir que esperava uma queda acentuada na venda de jogos, ou melhor, no consumo multimédia, mas estamos a aguentar-nos, não sei bem porquê. O que me parece haver de diferente é que também se deu um salto na produção de jogos, jogos esses que começam agora a aparecer, tendo muitos dos indies já sendo lançados, o que levou a uma boa série de anos com excelentes jogos, desde Elden Ring, God of War Ragnarok, Gran Turismo 7 ou Xenoblade Chronicles 3 em 2022; Baldur’s Gate 3, The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom, Sea of Stars ou Hi-Fi Rush em 2023; e ainda nem sequer acabámos 2024 e já temos Prince of Persia: The Lost Crown, Black Mith: Wukong, Tekken 8 ou Dragon’s Dogma II. A qualidade de produção melhorou imenso, e estamos a ficar habituados a ter estes jogos de topo. Há uma dessensibilização de grandes produções, já que saem uma data delas por ano. Há que saltar de uma para a outra sem espaço para digerir ou encontrar o nosso grupo próprio. O tempo dos 3 jogos por ano, bons ou maus, já lá vai.
NUNCA FOI TÃO FÁCIL JOGAR JOGOS
O Game Pass é um serviço brilhante e eu adoro-o. Raramente jogo os jogos mais que uma vez, e sinceramente depois acabo por me esquecer que os tenho. Não faço questão em ter aquela sensação de posse, não faço ideia quando os jogos saem do serviço, nem tão pouco isso me importa. A prova que o serviço é bom é que todas as marcas e mais algumas tentaram oferecer a sua versão dele com melhor ou pior qualidade, com mais ou menos chances de competir olhos nos olhos. Embora este serviço tenha absorvido muito do discurso e continue, para mim, a ser o melhor (especialmente para PC), está longe de ser o mais equilibrado, já que o velhinho e defunto Games with Gold ou o PS Plus davam tudo aquilo que o jogador precisava para ser feliz a metade do preço, mas para mim nem foram esses que me levaram para esse mundo da compra por atacado, mas sim o velhinho Humble Monthly, agora a viver uma nova vida sob o nome de Humble Choice, que ainda continua a ser o meu “go to” desde há uns quantos anos, e me faz ter páginas e páginas de backlog. Este excesso de jogos também faz com que, por um lado tenhamos sempre outro jogo para jogar, por outro que exista um pequeno sentimento de culpa por estarmos a comprar novos jogos quando temos tantos onde não tocamos.
UMA GERAÇÃO EM FAST FORWARD
A maneira como retemos a atenção não pode ser descurada nesta equação. O mundo avança a uma velocidade estonteante, e até eu que prefiro vídeos longos e complexos me vejo perdido muitas vezes no scroll infinito e estupidificante das shorts do Youtube. Consumo rápido e com ainda mais rápido acesso ao seguinte. Essa fragilidade é explorada por quem faz e por quem vive de falar sobre jogos. Muitas vezes o mais importante é que o jogador compre o jogo, desfrutar dele é algo secundário, um cenário idílico cada vez mais remetido ao mundo independente, onde o respeito pelo nosso tempo e a criação de uma relação de confiança pode ser um bom e frutuoso investimento a longo prazo. Este mundo vive de cliques e da nova sensação, curiosamente o inverso também é verdade, pois também é possível ganhar espaço a criar só no nosso nicho ou no nosso jogo, mas aí a audiência vai diminuindo e tornando-se muito menos expressiva, esfumando-se usualmente num canto do Reddit após aparecer a nova sensação, ou com aquele canal de Youtube visto por gente que já nem sequer joga o jogo há anos, mas continua a gostar de ver. Seja qual for a escolha, a verdade é que a tração só chega até à nova sensação momentânea.
A TRANSMISSÃO ORAL, COMO A MONONUCLEOSE
Há que perceber que o meu filho, os amigos e, segundo ele, toda a malta da escola, jogam em matilha. O que para mim foi o jogar futebol na rua com duas pedras ou duas mochilas a servir de baliza para eles é jogar jogos online. A experiência multijogador oferecida essencialmente por jogos gratuitos é o seu ponto de encontro no final das aulas ou durante os intervalos. Embora a minha geração aponte jogos como Fortnite ou Minecraft, o combo móvel e gratuito é imbatível, daí o cada vez maior investimento das marcas consolidadas e tradicionalmente associadas a outros mercados nessa expansão e diversificação do portefólio. É muito dinheiro que está a ser deixado nas bordas do prato. O sucesso de jogos como Clash Royale, Marvel Snap ou Clash of Clans veio mostrar que este é um mercado muito lucrativo, mercado esse aprimorado por jogos híbridos como Roblox, Brawlhalla, Genshin Impact ou mesmo Minecraft que permitem uma transição fácil da versão móvel no intervalo da escola, para a versão de PC ao chegar a casa, aí já com o servidor privado de Discord a servir de interface de voz para que se possam estar a ofender mutuamente, como os meus apelos por falta, ou dizer que o fora é para a minha equipa. O hype destes jogos como serviço é praticamente nulo, mas o meu filho joga isto tudo religiosa e diligentemente. Certo que pode não jogar tudo no mesmo dia, mas são os jogos que tem instalados, e se esporadicamente ainda instala o FIFA na fase de maior loucura dos amigos, isto apesar da sua total aversão e desconhecimento pelo mundo do futebol, é raríssimo que se interesse por algum jogo que gosto, e quando há uma excepção esta vem de algum youtuber seguido por todo o grupo de amigos que sugere um jogo qualquer que é a última Coca-Cola no deserto fazendo com que todos o comprem, embora usualmente o meu filhe o abandone em apenas um par de horas. É uma geração diferente e com pouquíssimo contributo para um frenesi que se via muito mais nas redes sociais.
A FRAGMENTAÇÃO DO TWITTER
Essas próprias redes sociais estão completamente fragmentadas. Adorava o Twitter, e agora o meu feed é um chorrilho de publicidade, misturado com posts que me interessam tanto com o processo de crescimento dos cascos do boi almiscarado. Os utilizadores interventivos e participativos estão a deixar o Twitter aos magotes, e se durante muito tempo parecia que não tinham pouso, agora a transferência tem sido gradual, primeiro para o Threads, agora para o Bluesky. Todos estão a desvalorizar esta transferência, afinal a esmagadora maioria dos números continuam com o Twitter. Não é bem assim. Aqueles utilizadores que tornavam as discussões produtivas fugiram. Aqueles que tornavam o Twitter divertido deram de frosques. Aquele feed bem curado de conteúdo que o algoritmo do Twitter tão bom era a criar desapareceu, tornando a aplicação um mundo perfeito para trolls e malta mais interessada em guerra de consolas. Raramente há uma discussão sobre um jogo, uma daquelas produtivas, não uma que dê especial ênfase a batalhas de caixas de plástico, e não ao produto em debate. E se isto é uma dor de decrescimento, os restantes produtos similares passam pelo oposto, com muitas entradas claramente a procurar atenção e interacção forçada, sem o verdadeiro objectivo de discutir um tema. A naturalidade provavelmente demorará a chegar de forma consistente, mas até lá um dos maiores veículos de transmissão de hype, ou Fear of Missing Out (FOMO) está doente, preso dentro de um ciclo de decadência do qual não sei se pode sair.
CONTROLADOS PELOS ALGORITMOS
Os algoritmos dos gigantes multimédia estão cada vez mais afinados para nos manterem agarrados. Tenho duas páginas de Youtube e recentemente abri a minha pessoal que já não era aberta há mais de 3 anos e surpreendi-me, ou melhor, perdi-me a ver o que me interessava nessa altura. A Google não perde tempo para nos enfiar conteúdo que pensa que vamos gostar pela goela, e isso resulta. Gradualmente os nossos interesses vão mudando. Era abismal a diferença. Já nem me lembrava de alguns criadores de conteúdos. Infelizmente isto é igual para tudo. O algoritmo capta a nova tendência e empurra-a o mais que pode, capitalizando nesse interesse fugaz. Temos que nos lembrar que nós, jogadores que consomem conteúdo regular sobre videojogos, somos uma minoria ou mesmo, uma minoria mínima. Este barulho pixelizado escondido pelos servidores era, muitas vezes, a claque dos Ultras do algoritmo, estrategicamente colocados de forma a só ouvirmos o apoio ao novo jogo, à nova moda, à nova tendência, aos novos cliques.
PATIENT GAMERS
Isto tudo origina o crescimento do patient gaming, isto é, jogadores que esperam pelo momento certo para comprar e jogar os jogos. Por muito que seja fácil aceder aos jogos, tal como os serviços de subscrição de filmes e séries, não dá para ter tudo e ainda há muitas pessoas que querem mesmo comprar o jogo e ficar com ele, e é aqui que entra mais um paradoxo. Jogar é mesmo muito caro. Na Europa os jogos já custam 80€, e duvido muito que alguma vez pague isso por um jogo, especialmente quando sei que um mês depois já vai estar perto do seu valor real numa qualquer promoção de 40%, e se tiver ainda mais paciência ainda o apanharei com relativa facilidade entre 50 a 80% um pouco mais tarde. Os jogos só aumentam de preço porque as pessoas os compram, e compram-nos porque existe hype, ou FOMO, chamem-lhe o que quiserem, se não comprassem jogos na bisga, seguramente que estes já não seriam tão caros, ou tão cheios de conteúdo inútil, introduzido para criar a ilusão de valor, mesmo que não contribuam absolutamente nada para a história ou para a nossa diversão. A parte da comunidade que percebeu isto não para de crescer, mas é uma comunidade que não contribui para o hype da recepção de um jogo, porque quando o jogam este já não é moda.
RESUMINDO E BARALHANDO
Este tema é bastante complexo. Enquanto escrevo vejo o meu pensamento a divagar para a maionese diversas vezes. Frequentemente começo a subdividir grupos, a contra-argumentar ou a pensar em mais razões acessórias que podia acrescentar a esta lista, mas em última análise esta é uma discussão inútil e infrutífera porque o que realmente vale são os relatórios trimestrais das empresas, e essas continuarão a trabalhar para eles, não para nós. O nosso papel é fazermo-nos ouvir nesses relatórios, comprando o bom, ignorando o mau e nesse ponto falhamos, já que muitas vezes o popular não precisa de ser bom, e o bom passa despercebido. Quando comecei a criar conteúdo fi-lo com a ilusão que poderia mostrar o que era bom, dar-lhe uma voz, mas agora sei que isso foi parvo, e considerando esta última parte, afinal o que é o hype? Pelos vistos o circuito funciona, e funciona melhor que nunca!