Tenho poucos arrependimentos da vida, e afirmo-o sem querer vender uma imagem de superioridade que não tenho. Não os tenho por ser extremamente cauteloso – e por vezes até calculista – nas acções que tomo. Mas consigo identificar facilmente um dos arrependimentos que ainda carrego, que foi o meu desinteresse notório em aprender um mínimo de bricolage com o meu avô.

Enquanto a sua morte ainda me pesa, e a vontade de falar sobre ele continua a sobrepor-se à falta que ele me faz, tenho pensado nas últimas semanas o verdadeiro inútil sem conhecimento nem prática em resolver problemas de DIY que eu sou, completamente em oposição ao que ele era. 

Não fosse apenas pelo facto de que aprendeu mecânica desde muito cedo, e de lhe ter pesado até ao fim a impossibilidade de embarcar no seu grande sonho, uma licenciatura em engenharia mecânica dadas as circunstâncias da sua vida, mas é consensual por todos que o conheceram que era uma pessoa com uma inteligência muito acima da média, com uma sagacidade que lhe permitia compreender muito rapidamente como qualquer coisa funcionava, e de a reparar, ou reconstruir se necessário.

Poderia ter centenas de histórias para contar sobre esta sua habilidade e capacidade até de compreender electrónica à medida que a tecnologia ia avançando, conseguindo reparar dispositivos com facilidade. Reconstruir peças em plástica, se partidas, ou em metal, ou a situação mais extrema: reconstruir uma estátua de 95 cm que tínhamos em casa, que se partiu em imensas peças, e que a sua outra faceta pouco explorada, a sua inata habilidade artística, permitiu reconstruir como um puzzle quase impossível, e até hoje, sem ninguém perceber que ela alguma vez esteve partida.

Mas a história que demonstra a sua capacidade de reparar e restaurar foi algo que fez na última década de vida, já entrado nos oitentas. Para manter o cérebro activo (esse bem preciso que permaneceu quase intacto até ao seu último dia de vida) e até a destreza manual (ainda que tenha vivido 50 anos com uma mão direita sem o polegar e com dedos quase imóveis devido a um acidente de trabalho), o meu avô quando via algo no passeio ou encostado a contentores que ele sentisse que poderia ser reparado, fossem televisões, aparelhagens, pequenos móveis, candeeiros, ou outros pequenos electrodomésticos, levava-o a parar o carro, e colocava-os no porta-bagagens. Os dias seguintes eram dedicados a restaurar aquela peça até à sua existência quase original, não só em termos funcionais mas também estéticos. E a seguir doava a alguém que precisasse, ou ia até instituições de caridade e oferecia-as. 

Para ele valia o desafio de restaurar e manter o cérebro activo, como a resolução de puzzles físicos que mantiveram a sua mente e destreza activas até o seu corpo lhe permitir. E pelo caminho ia contribuindo com algo para quem mais precisava, o que pouco me surpreendia. A máxima popular diz que a vontade de dar sempre foi maior a quem menos teve, e ele exemplificou-me isso desde o dia em que nasci.

Mas foram milhares as oportunidades que tive de beber de mais uma fonte do seu conhecimento, dos muitos tragos de aprendizagem que recebi dele. Mas faltou esse: a capacidade de solucionar, reparar e resolver practicamente qualquer coisa, como se a bricolage fosse mais um poder especial do seu cinto de habilidades extraordinárias. 

Mas a oportunidade passou, e aqui estou, que quando me confronto com algum problema em casa ou no carro, do mais pequeno ao maior, penso sempre que ele observaria e encontraria uma solução genial para o resolver.

Nos dias de hoje, ainda com a ferida aberta da sua morte, muitas são as situações que me lembram dele, e jogar ao indie Uncle Chop’s Rocket Shop foi de uma certa forma uma dolorosa pitada de sal pela forma como me relembrou do meu próprio arrependimento.

Não entendam com este meu desabafo que Uncle Chop’s Rocket Shop é uma experiência a evitar, muito pelo contrário: este jogo indie combina elementos de simulação e roguelite, trazendo-nos uma verdadeira experiência única. 

Recém-lançado no PC e todas as consolas actuais, Uncle Chop’s Rocket Shop foi desenvolvido pelo estúdio Beard Envy e publicado pela Kasedo Games, vivemos o papel de Wilbur, uma raposa antropomórfica que é um mecânico numa estação de serviço espacial gerida pela implacável corporação Uncle Chop. 

O nosso loop diário envolve reparar naves espaciais, desde tarefas simples como reabastecimento de combustível, até revisões completas de módulos complexos. Cada dia de trabalho tem um limite de tempo, exigindo de nós uma extrema eficiência e precisão para completar o máximo de tarefas possíveis, e conseguirmos, dessa forma, pagar o que devemos à mega-corporação.

Um grande destaque que sentimos em Uncle Chop’s Rocket Shop é a abordagem práctica nas reparações, exigindo que utilizemos uma variedade de ferramentas diferentes e sigamos manuais detalhados para diagnosticar e corrigir falhas nos módulos das naves. Esta mecânica lembra, de certa forma, jogos como Keep Talking and Nobody Explodes, onde a interacção direta e a interpretação de instruções são cruciais, e em que cada módulo funciona como um puzzle com regras fechado em si mesmo.

Mas a grande originalidade de Uncle Chop’s Rocket Shop é a forma genial como incorpora elementos de roguelite, onde cada falha pode levar à nossa morte de forma “dolorosa”, resultando num reinício, mas em que para cá do ecrã trazemos o conhecimento adquirido em tentativas anteriores. Aqui, o verdadeiro progresso não está apenas nas melhorias adquiridas, mas sim na capacidade que vamos desenvolvendo de memorizar os procedimentos de reparação sem termos a necessidade de consultar o manual. 

Como os dias são gerados aleatoriamente, cada nova tentativa é uma experiência diferente, pois não dá para saber de cor como a sequência de tarefas vai ser, e nunca sabemos quais serão os trabalhos de reparação que iremos enfrentar.

O jogo também introduz uma mecânica semelhante a “boss fights“, onde algumas reparações são extremamente complexas e indudadas de pressão, e exigem de nós um alto nível de rapidez e precisão, testando ao máximo o conhecimento que acumulámos e sobretudo a nossa destreza.

De forma mais tradicional para o género em termos de meta-progressão podemos adquirir alguns “perks” que tornam cada nova tentativa mais fácil, como o aumento da nossa velocidade de movimento e upgrades permanentes na eficácia nas ferramentas. 

Colidindo com o meu impacto pessoal do jogo pelas razões que já perceberam, Uncle Chop’s Rocket Shop apresenta uma direcção artística mais cartunesca e complementado por um humor irreverente que aborda temas como a futilidade da existência e as pressões do capitalismo de forma satírica. Este é um mundo repleto de personagens peculiares e diálogos espirituosos que enriquecem a narrativa, tornando a experiência roguelite ainda mais envolvente e divertida.

Uncle Chop’s Rocket Shop leva-nos por uma experiência verdadeiramente única que mistura simulação detalhada com elementos de roguelite, desafiando-nos a aprimorar constantemente as nossas habilidades de reparação enquanto navegamos por uma narrativa humorística e satírica. As “boss fights” em formato de trabalhos altamente desafiadores adicionam uma camada extra de pressão e emoção, enquanto a necessidade de memorizar procedimentos mecânicos e electrónicos de reparação reforça a progressão roguelite do jogo. Num mar ameno de pasmaceira criativa, Uncle Chop’s Rocket Shop vem, de forma muito silenciosa, trazer-nos algo original.