E agora para mais um episódio de “jogos que me deixaram totalmente apaixonados de ver apenas poucos segundos deles, mas depois de o jogar percebi que devia ter ficado apenas na expectativa”, aqui temos: Ultros.
Não sei se o sentimento que descrevo no parágrafo anterior já vos aconteceu, mas Ultros tinha tudo para eu o adorar. A óbvia inspiração nos mundos de Moebius que o seu criador, Niklas Åkerblad, aliás, El Huervo, o artista sueco por trás de Hotline Miami, não esconde, num mundo próximo da experimentação psicadélica da banda-desenhada europeia dos anos 1970 aplicada a um metroidvania. Estes parecem os ingredientes perfeitos para uma sopa feita à minha medida, mas onde rapidamente percebi que, à semelhança de qualquer outro meio artístico, quando uma obra quer fazer demasiadas coisas em simultâneo, dificilmente chega a ser verdadeiramente boa na sua premissa base.
Ultros, desenvolvido pelo estúdio Hadoque e publicado pela Kepler Interactive, é um metroidvania que se destaca rapidamente pela sua paleta vibrante e pela atmosfera surreal, que encaixam na perfeição nos temas filosóficos e espirituais subjacentes, num um ciclo de recomeços dentro de um ecossistema alienígena.
Apesar de existir algum mistério em torno do que estamos a viver, percebemos que estamos dentro de uma nave espacial chamada Sarcophagus, e que temos de impedir o titular demónio Ultros de acordar. Mas ao longo de todo o tempo em que o demónio tem estado adormecido a nave acabou por ser tomada por flora selvagem, para além de ser habitada por alguns alienígenas que enlouqueceram. A história de Ultros é enigmática e cheia de simbolismo, e explora temas como ciclos de vida e morte, reencarnação e equilíbrio ecológico, sendo a narrativa contada de forma fragmentada, levando-nos a interpretações subjectivas.
No nosso papel de jardineiros deste ecossistema febril, temos de plantar estas sementes para que elas se transformem tanto em plantas comestíveis como em árvores que nos permitam alcançar lugares inacessíveis da nave. O jogo apresenta-nos este sistema de jardinagem e cultivo, onde plantamos e manipulamos a vegetação para abrir caminhos e interagir com o ambiente de formas inusitadas, mas que se torna aborrecido em alguns loops quando temos de fazer backtrack para encontrar sementes específicas e replantá-las noutro sítio.
Como esperado do género, Ultros apresenta-nos uma nave composta por mapas interconectados, onde novas habilidades obtidas dos bosses desbloqueiam caminhos anteriormente inacessíveis. No entanto, o jogo adiciona um twist interessante: um ciclo de reinício temporal, que nos obriga a reaprender o mundo de maneiras diferentes a cada loop. Nestes loops a nossa progressão em termos de skills volta a zero, mas a aquisição subsequentemente é mais barata nos próximos loops. O sistema de aquisição de novas skills – todas elas de combate – é algo críptica, e parece-me excessivamente experimental para ser um modelo que contribua para a experiência de Ultros como um todo.
À medida que derrotamos os inimigos, dependendo da nossa mestria na luta e diversidade de golpes, podemos extrair partes comestíveis destes. Somemos a isso as plantas que vamos recolhendo, e ficamos com um acervo de alimentos que podem ser usados apenas para recuperar a nossa vida, ou para subir uma das quatro barras coloridas num gráfico cerebral que temos. Cada nova skill na árvore de novos ataques pede-nos segmentos diversos dessas barras, e uma alimentação variada vai-nos permitir ter “energia” suficiente para comprar novas skills. Este sistema de aquisição de skills é sem sombra de dúvida diferente, mas questiono-me se a tradicional utilização de skill points não seria menos críptica e mais bem aproveitada?
O combate pede-nos para diversificar a nossa gama de golpes e foca-se em ataques rápidos e esquivas, mas por alguma razão sinto que os nossos movimentos são mais pesados e pouco responsivos do que o jogo pediria. Em alguns momentos é difícil não comparar com a extrema fluidez e execução perfeitas do combate de Guacamelee e pensar que Ultros teria tudo a ganhar com um sistema de luta mais coeso e orgânico.
Indiscutivelmente o elemento que salta à vista em Ultros é a sua direcção de arte. A aposta em cores saturadas, traços psicadélicos e um design de mundo que evoca uma paisagem alienígena viva e mutante como nas pranchas de Moebius, resultam num ambiente que desafia percepções convencionais e transporta-nos para um universo onírico. Mas a riqueza visual de Ultros, se funciona na perfeição em screenshots, em jogo corrido acaba por ser vítima de uma poluição visual tremenda. Descortinar entre a decoração quase patológica de todos os pixels quadrados de Ultros o que é interagível ou destrutível e o que não é, assim como o ruído que se cria com os próprios inimigos, faz-me pensar que talvez El Huervo tenha falhado na compreensão do porquê do mestre Moebius funcionar tão bem: é que eles sabia dar espaços de respiração às áreas mais orgânicas e detalhadas. Mas Ultros não faz isso: é tudo uma tapeçaria de elementos visuais coloridos que são realmente deslumbrantes do ponto de vista artístico, mas que nos causam ruído à jogabilidade.
Por outro lado, tenho muitas dúvidas quanto à necessidade do sistema de reset e loop como foi implementado. Percebo a decisão conceptual, e a forma como impacta o mundo, mas acaba por tornar-se excessivamente repetitivo e faz-nos perder o impacto a uma série de excelentes pontos no jogo que se esgotam pela sobre-exposição e elevada repetição.
Numa época em que tantos jogos se limitam a replicar o que já foi feito, seria injusto não elogiar Ultros por tudo o que arrisca a fazer diferente, como pelo facto de ser, indiscutivelmente, um jogo único. Mas penso que o grande problema de Ultros foi querer mudar e inovar muitos sistemas apenas pelo desejo de ser diferente e experimental. Seja o semi-elemento roguelite do loop cronológico aplicado a um metroidvania, ao sistema de sementes e plantações, e passando pelos alimentos enquanto origem de aquisição de skills: são muitos experimentalismos que não são alicerçados numa jogabilidade objectivamente coesa. E apesar de tudo o que faz de bem, tenho pena que o resultado final não me permita gostar tanto dele como eu desejaria gostar.