Acredito que o arrojo de afirmar algo como o que escrevi no título é o suficiente para causar alguns calafrios ou irritações a quem se cruzou com a frase. Mas a subjectividade disto, ou do melhor jogo do ano, aliás, do melhor, mais bonito, pior, mais entusiasmante, ou qualquer consideração pessoal sobre qualquer tema é isso mesmo: intrinsecamente subjectiva.

Não são apenas os óculos da nostalgia a colorirem a série em cores que ela potencialmente não tem: há uns anos regressei à série, muito antes de sequer imaginar que Legacy of Kain: Soul Reaver 1 and 2 Remastered iria sair, e atestei essa minha certeza – o que diversos autores, especialmente Ann Henning conseguiram, foi criar um mundo e um enredo de qualidade indiscutivelmente literária. 

Diferente de muitos jogos de acção da época, Soul Reaver, o segundo jogo da série Legacy of Kain, não se limitava a um enredo simples ou a clichés narrativos, mas sim uma história densa e sombria, com personagens complexos e diálogos que apetece saborear, e que ficaram gravados na minha mente.

Uma tragédia de nuances góticas que acompanha Raziel, um vampiro transformado num espectro após ter sido traído pelo seu mestre, Kain, o protagonista do jogo original. Movido pela vingança e pela busca por redenção, Raziel atravessa o mundo de Nosgoth alternando entre os planos material e espectral, sem saber que é, na realidade, apenas um instrumento numa guerra cósmica cuja escala é muito maior do que o seu próprio conhecimento do universo. 

Esta abordagem dúplice não tinha efeitos apenas em termos mecânicos, mas também contribuiu para alicerçar um universo narrativo repleto de questões e reviravoltas filosóficas sobre destino, livre-arbítrio e identidade.

Diria que mais do que o tema da vingança, Soul Reaver explora a existência, e o seu significado. Raziel – e nós, por extensão – é confrontado com verdades que a desafiam sua própria percepção da realidade, descobrindo que o seu papel na história pode ser muito mais complexo do que a instrumentalização simplista da vingança e a destruição de Kain. A manipulação do destino, a noção de predestinação, a inexistência de liberdade e o ciclo de poder são elementos centrais na narrativa, mas uma reflexão sobre a inevitabilidade da vida, e da morte.

A forma como a série evita a dicotomia clássica de herói e vilão, tornando ambos os personagens figuras ambíguas e multifacetadas é algo que diria inédito na “infância” dos videojogos à época, mas que teria reverberações nas décadas vindouras. Isso percebe-se pela riqueza simbólica dos diálogos, com uma linguagem mais erudita e complexa que reforça o peso épico da narrativa. O relacionamento entre Raziel e Kain desenvolve-se ao longo dos 3  jogos (contando com Defiance, e excluindo os Blood Omen), de maneira não linear, trazendo momentos que subverteram todas as nossas expectativas. 

É impossível não reconhecer o impacto de Soul Reaver e a forma como ele pode ser sentido em diversos jogos que adoptaram a sua vida de complexidade narrativa. A sua influência sente-se em tantas e tão diferentes séries, desde Darksiders, com o seu tom apocalíptico e similar estrutura de exploração, até a um dos colossos da indústria, God of War, que adoptou uma abordagem cinematográfica com um tom semelhante. Para além disso, a qualidade dos diálogos e da dobragem (diria que o mítico Tony Jay teve aqui uma das suas melhores e mais memoráveis interpretações), e estabeleceu um novo padrão para a indústria, demonstrando o potencial dos videojogos como meio de contar histórias complexas. Para mim, com Soul Reaver, dá-se a confirmação definitiva no caminho que trilhamos até aos dias de hoje, em que os videojogos têm a capacidade de veicular histórias (ditas) “sérias” com a densidade do cinema ou da literatura.

Outra das grandes contribuições de Soul Reaver foi a sua abordagem criativa ao design de mundo aberto interconectado, um precursor do que hoje poderíamos apelidar de um metroidvania tridimensional. Tecnicamente as soluções encontradas pelos seus criadores ainda hoje são utilizadas: mascarando os ecrãs de de carregamento com narrações ao transitar entre áreas, proporcionando uma experiência fluida e imersiva, algo quase inédito para a época.

Mas penso que o que a grande maioria dos jogadores (e criadores contemporâneos) se lembra é da mecânica de alternância entre o plano material e o espectral. Cada dimensão tinha as suas próprias leis da Física o que nos permitia resolver puzzles ou ter acesso a áreas de maneiras diferentes, um conceito de mudança de planos que inspiraria mecânicas em jogos futuros, como The Legend of Zelda: A Link Between Worlds, Guacamelee e Titanfall 2, entre tantos outros.

Apesar de não receber novas iterações desde 2003, com Legacy of Kain: Defiance, é inegável que a série continua a ser cultuada por fãs, e frequentemente surgem pedidos por uma continuação daquele que é para mim – e acredito que para muita gente – a série de videojogos com melhor história de sempre. Mas tudo o que recebemos foi uma remasterização recente, com melhorias marginais entre versões (como podem ver pelo vídeo), sendo que a versão original de Soul Reaver foi removida do Steam há alguns anos pela Crystal Dynamics, e dificilmente regressará. Quer dizer que a melhor (e única) forma de termos acesso a esta peça de grandeza histórica para os videojogos é mesmo com uma colectânea remasterizada que custa 29€. 

Mas para todos aqueles que falharam o comboio de Legacy of Kain, diria que há sempre tempo de embarcarem numa série intemporal, ultrapassando, se possível, os entraves com os controlos tridimensionais amplamente desactualizados. 

Tomem mais uma frase minha – como deveriam tomar todas – com uma pitada de sal: mas acreditem que mesmo esse mofo mecânico é mínimo com a possibilidade que temos de jogar uma das melhores histórias de videojogos de sempre. Digo-o, e volto a afirmar. E ainda espero sentado pelo dia em que seja suplantado.