Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell é ainda hoje um dos meus livros preferidos. Foi essa preferência pessoal que me levou a aceitar Inhuman Resources: A Literary Machination (doravante somente Inhuman Resources), mesmo pertencendo a um género que habitualmente não jogo nem gosto.
Também é verdade que o Finnegan Motors, estúdio produtor deste jogo, cometeu a ousadia de afirmar que, com este jogo, procurava redefinir a experiência de leitura, tal como acontecia com os livros das Aventuras Fantásticas que devorava quando era adolescente. No fundo, Inhuman Resources é isso mesmo, uma Aventura Fantástica passada para o ecrã que não nos obriga a usar dados, lápis ou papel, embora eu tenha pontualmente sido obrigado a tirar algumas notas.
Parece então que já deixei pouco à imaginação. Sim, Inhuman Resources é um jogo de escolhas e consequências, e mesmo que estas aconteçam fora da nossa vista é raro que não voltem a aparecer para nos atormentar.
Para criar algo similar, com uma estrutura de decisão em árvore é preciso antecipar imensos cenários para não deixar pontas soltas ou esquecer de forma pouco natural elementos importantes para a acção. Inhuman Resources raramente deixa isso acontecer, mas pontualmente fá-lo, e a maneira como isso acontece depreende que a história foi escrita do fim para o início, algo que é relativamente comum acontecer, mas dentro de um jogo tão específico esse processo de decisão torna-se notório, pois é perceptível quando um ponto é introduzido apenas para permitir a introdução do seguinte, sem que a sua relevância seja fundamental para a história.
E é nessa história que um jogo como este vive ou morre. Mais uma vez antecipei-me e levantei a ponta do véu, e para não dar spoilers ainda maiores mantenho que o enredo me parece inspirado em 1984, mas cruzado com muitas partes que parecem decalcadas de outros filmes ou livros. Com isto não quero dizer que a escrita é uma cópia, apenas que em nenhum momento parece que estamos a experienciar algo que nunca vimos ou sentimos, porém sempre me senti impelido a seguir em frente, saber mais, e mesmo a parte central do “livro”, usualmente a mais lenta e aborrecida, teve sempre um propósito, e deu-nos um motivo para a querermos saber e explorar.
Os personagens principais e secundários têm personalidades bem marcadas e caracterizadas, sendo o seu propósito na história bem claro e, até certo ponto, imprescindível, é quando entramos no elenco de suporte que alguns problemas surgem, mas nada de importante.
A história vai avançando por capítulos que usualmente representam dias. Uns são mais curtos que outros, mas tal como nos livros oferecem bom ponto para pararmos caso queiramos. Gostei muito desta estrutura.
Uma estrutura de escolhas deixa a entender que podemos ter uma árvore de habilidades que nos ofereça a opção de escolher respostas diferentes consoante as características do nosso personagem e isso existe, apenas não da forma tradicional. Esporadicamente algumas das nossas opções dão-nos pontos de habilidade ou características que nos oferecem soluções distintas. Cada pergunta apresenta nas respostas todas as opções possíveis, mesmo as que não podemos escolher, como uma amostra do que perdemos anteriormente.
Esse sistema deixa imediatamente antever muito replay value, e eu tendo a acreditar que esse existe às pazadas. Para além da promessa dos programadores que existem múltiplos finais, algo que não posso atestar pois já demorei 11 horas para ver apenas um deles, as próprias opções durante o jogo já permitem perceber que há muitos caminhos que deixei por explorar.
Também temos um inventário onde podemos aceder a conteúdos que vamos encontrando, os mais interessantes de todos são, de muito longe, as cartas e documentos que explicam muito do que vai acontecendo em plano de fundo.
Inhuman Resources é um jogo baseado em texto, então tecnicamente o que vemos no ecrã para além disso? Não muito mais, há que admitir. O plano de fundo é sempre a mesma imagem, como um stencil que muda sempre que o tom da acção se torna mais intenso ou negro, a música é sempre a mesma, o que mais muda são as ilustrações que aparecem com as falas dos personagens, essas sim muito boas a transmitir emoções. Esporadicamente há efeitos sonoros, mas as personagens não falam, bem, pelo menos não mais que a Margaret Robinson no Incrível Mundo de Gumball. Há poucas falhas que tenha notado neste ponto, só me lembro de uma ilustração ter ficado com a parte que devia ler fora do ecrã, mas posteriormente revelou-se que a leitura não era obrigatória, logo não devo ter perdido muito, espero eu.
Então aproximamo-nos do fim e temos dois pontos para responder. Inhuman Resources redefiniu mesmo a experiência de leitura? Vale a pena jogar Inhuman Resources? Dois pontos bem distintos. Se a minha opinião sobre o primeiro pode ser menos fundamentada, eu creio que este jogo não fez nada de notoriamente diferente do que já havia feito as Aventuras fantásticas na década de 1980, sim há 40 anos, já a segunda a minha resposta é muito mais clara. Sim vale bem a pena jogar Inhuman Resources, mesmo sem saber quanto irá custar, admito que foi uma história que me agarrou do início ao fim. Não é normal isso acontecer num jogo de acção muito menos seria num jogo baseado em texto. Recomendo!