Imaginem o seguinte cenário: o príncipe da Cinderela (mas com ar de D’Artagnan), a correr a cidade com um sapato de cristal à procura da proprietária daquela peça de calçado que poderia ser uma parceria entre duas marcas portuguesas, a Atlantis e a Fly London. Agora substituam esse sapato por mim mesmo, e a Cinderela como o soulslike que me encha as medidas, e que me faça render a um género que tantas vezes já tentei gostar mas que me vai escapando das mãos e do gosto.
Depois de correr meio mundo videolúdico à procura deste título, nunca pensei que me apanhassem assim: eu, alguém que normalmente tenta mergulhar em soulslike mas depois acaba por fugir a sete pés, estou rendido a Lies of P. Sempre achei o género frustrante, sobretudo pelo tempo que me obriga a investir, naquela fórmula de morrer e repetir ad nauseam, num ciclo de tentativa-erro para “git gud” que parecia feita para testar os meus limites de paciência. É que eu já dei para este peditório ao longo de muitos, especialmente na infância onde os jogos da NES com o qual cresci pediam exactamente isto. Como diria a infame frase do Bane, mas adaptada por mim: vocês meramente adoptaram a repetição e a frustração, mas eu nasci nela e foi moldado por ela. E agora sou um tipo com cada vez mais pelos brancos na barba e no peito e quero é sopas e descanso.
Mas…
Lies of P, desenvolvido pela Neowiz e pelo Round8 Studio, conseguiu algo extraordinário: pegou no desafio típico do género e deu-lhe uma roupagem tão estilizada, tão polida e, acima de tudo, tão gratificante, que não consegui largar o comando. Aliás, sendo mais honesto com esta afirmação: pouso-o de frustração, mas volto, mesmo que dias depois. Um fenómeno que nenhum jogo do género me provocou até então.
A primeira coisa que me prendeu foi sem dúvida a atmosfera: Lies of P reimagina a história de Pinóquio num universo sombrio com laivos de steampunk, habitado por autómatos enlouquecidos e ruas decadentes, onde a violência e as trevas são companhia constante. A direcção de arte dos bairros da cidade, dos inimigos e das personagens que conhecemos é de uma riqueza visual impressionante: uma espécie de mistura entre a imaginação gótica de Bloodborne e o onirismo steampunk de Bioshock: Infinite.
E, perdoem-me os fãs do género que rasgam as vestes para defender os soulslikes, ao contrário de muitos congéneres onde o enredo parece martelado de propósito, sendo apenas uma justificação narrativa inócua para andar “à pancada”, aqui senti-me constantemente puxado pela história. Há um fio narrativo claro, carregado de escolhas morais, e essa ligação emocional ajudou-me a insistir, mesmo quando o jogo se tornava progressivamente mais exigente e eu temia não ter “git gud” o suficiente.
É indiscutível que Lies of P é difícil. Mas é uma dificuldade que me pareceu muito mais justa do que noutros títulos do género, já que cada ataque, cada esquiva e cada bloqueio têm peso e significado, e as respectivas animações são fluídas e orgânicas. O foco no sistema de parry, permitindo-nos uma defesa no timing certo, é fundamental, mas o jogo ensina-nos sem ser punitivo de forma gratuita, e cada vez que falhei, percebi o porquê: nunca senti que estivesse a lutar contra controlos imprecisos ou decisões de design absurdas. Mesmo em situações em que fui surpreendido (e morri) pelo posicionamento de alguns inimigos no desenho dos níveis, quando lá voltei fui com uma cautela e postura diferentes.
Lies of P continua a ser um desafio robusto, e é longe de ser um “soulslike fácil”, se é que esse conceito existe e não é paradoxal. Mas para quem, como eu, nunca se apaixonou pelo género, este jogo oferece algo raro: uma porta de entrada acessível sem sacrificar a identidade que torna o género tão adorado. Os checkpoints parecem-me mais generosos, os sistemas de progressão são claros e tem uma curva de dificuldade que, embora íngreme, é sempre recompensadora.
Em termos de combate, a customização do nosso personagem vai um pouco mais longe do que outros jogos que joguei: não é apenas a arma, e o quanto esta condiciona o nosso estilo de jogo, mas também o tipo de braço mecânico que trazemos e qual a habilidade especial associada.
Admito que há um elemento do nosso arsenal que mal utilizo, e que segundo a sugestão da Alexa, há dias, fará uma grande diferença na minha estrada em direcção ao fim do jogo: a utilização dos objectos “atiráveis”. Ainda não me é natural pensar neles, até porque me concentro muito no bailado entre mim e o(s) inimigo(s) à minha volta, mas esta sugestão faz todo o sentido: poder danificar ou causar debuffs aos adversários à distância é uma grande vantagem onde qualquer erro de proximidade pode pagar-se caro.
Como podem ter percebido, ainda não terminei o jogo, mas parece-me claro que este é o título do género no qual estou investido o suficiente para ir jogando, com tempo, sem pressas, e com vontade de conhecer a história que se esconde por trás do silencioso P, e de que forma é que este jogo diverge dos conceitos principais do conto original. Mas diria que o que me vai fazer voltar é sobretudo o tom e o ambiente do jogo, a forma criativa e negra como repensam e reimaginam o mundo criado por Carlo Collodi e o trazem para um ambiente mais negro, onde os inimigos são criativamente desenvolvidos e instantaneamente memoráveis.