Pelas minhas contas fez no passado dia 1 de Março 23 anos que o meu amigo Ricardo me ofereceu um pack com Amerzone – The Explorer’s Legacy e Syberia como prenda de anos, reconhecendo a minha paixão antiga por aventuras gráficas. Das duas, admito, que Syberia viria a ser até hoje uma das minhas favoritas, com Amerzone – na sua linha herdada de Myst – a ser protelada para segundo plano.

Lançado originalmente em 1999 pela mão de Benoît Sokal, ainda que o falecido criador belga se tenha notabilizado pelo seu trabalho na série Syberia, e o sucesso desta tenha de uma certa forma eclipsado e vetado Amerzone ao quase esquecimento. Benoît Sokal começou a sua carreira como autor de banda desenhada, tendo-se notabilizado na 9a Arte com a série Inspector Canardo. A sua transição para o mundo dos videojogos foi natural: sempre guiado por um profundo sentido estético e narrativo, e Amerzone foi o seu primeiro jogo, destacando-se das produções da época pela sua direcção artística única, quase pictórica, ainda que com as reconhecidas limitações técnicas das plataformas de então, mas sobretudo pela sua abordagem mais madura ao storytelling.

Para Sokal, Amerzone foi mais do que uma aventura gráfica: foi uma obra de autor, onde a sua visão fundia realismo e fantasia de forma orgânica, transportando-nos para um mundo tão exótico quanto credível, onde a selva da Amerzone é tanto um local físico como um espaço simbólico, onde a culpa, a redenção e a memória se entrelaçam, e nos levam numa viagem memorável. Uma viagem cuja qualidade eu só viria a reconhecer anos mais tarde, quiçá fruto de uma maior maturidade, o que me permitiu perceber a intenção do autor quando se aventurou por uma experiência na linha das criações dos irmãos Millar. 

Infelizmente, Benoît Sokal faleceu em 2021, mas o seu legado vive através das suas obras, e esta remasterização de Amerzone é uma prova disso, servindo como homenagem póstuma, permitindo também que novos públicos descubram o génio e a sensibilidade de um dos grandes visionários da arte digital europeia.

Como percebemos pelas primeiras imagens e por comparação do que nos lembramos do lançamento original há 26 anos, este clássico do género aventura point-and-click regressa agora numa nova roupagem. A versão renovada presta homenagem à atmosfera única e à narrativa envolvente do jogo original, mantendo-as practicamente intactas, ao mesmo tempo que actualiza os seus aspectos técnicos para um público contemporâneo.

Amerzone – The Explorer’s Legacy é uma adaptação fiel do jogo original, mas com uma diferença gráfica abismal, para além de suporte para resoluções modernas, novo interface e sistema de deambulação mais livre. A narrativa centra-se num jornalista que visita um velho explorador moribundo, Alexandre Valembois, que revela um segredo extraordinário: a existência de uma terra esquecida, a Amerzone, onde vivem as misteriosas Aves Brancas, uma espécie mítica em risco de extinção. Movidos pelo último pedido de Valembois, embarcamos numa viagem ao coração da selva sul-americana, enfrentando perigos naturais e puzzles ancestrais. Boas peças de escrita sobrevivem ao teste do tempo, e este é um desses casos, onde a força do enredo reside no seu tom melancólico, quase poético, tão típico de Sokal, e na crítica subtil ao colonialismo, à ganância humana e à exploração desenfreada da natureza.

Em termos visuais, Amerzone abandona os gráficos pré-renderizados do original onde olhávamos para as cenas como se de quadros isolados e estáticos se tratassem, em favor de ambientes totalmente recriados em 3D, com iluminação dinâmica e a possibilidade de os explorarmos. Até os triggers de interacção com elementos do cenário são mais claros e modernizados, demonstrando, para quem jogou o original, o quanto a indústria, mas sobretudo o género evoluíram em 26 anos.

Embora mais linear e contemplativo do que muitos jogos modernos, Amerzone é um marco para o género desde que viu a luz do dia na viragem do milénio. Uma experiência sem combates, nem pontuação, e onde progredimos munidos da curiosidade, da exploração e da empatia, tendo estes elementos como motores da narrativa. Esta nova edição oferece a oportunidade perfeita para uma nova geração de jogadores descobrir uma jóia esquecida, e para aqueles que reconheceram o seu valor quando foi lançado – que não foi o meu caso até anos mais tarde – de reviverem a nostalgia com um novo brilho, sob uma lente moderna e contemporânea.

Costumo ser crítico dos meros milking the cow de muitos remasters, mas Amerzone – The Explorer’s Legacy prova que é possível “restaurar” videojogos de determinados períodos para que eles ganhem outra dimensão apoiados pelos avanços técnicos e conceptuais da passagem natural do tempo. Mas esta é mais do que uma actualização técnica, é uma celebração de um momento específico na história dos videojogos, onde a narrativa, a arte e a imaginação se entrelaçavam de forma quase literária, mas sobretudo um abraço à genialidade criativa e emocional do grande Benoît Sokal, cuja visão permanece nos dias de hoje tão relevante quanto comovente.