Há pouco tempo li um conto de Lovecraft, aquele que muitos diziam ser dos mais aterradores, mas de forma subtil. The Colour Out of Space, uma história de 1927 que foi há poucos anos adaptada ao cinema num filme protagonizado pelo Nicolas Cage, e fala-nos de uma cor misteriosa que caiu do céu, e que se foi espalhando pelo terreno, esterilizando tudo no seu caminho. Perdoem-me o quase trocadilho, mas foi não só esta história mas também os muitos jogos inspirados no mythos lovecraftiano que me fizeram pensar no verdadeiro paradoxo de um mundo tematicamente estéril ser, na realidade, um dos terrenos mais férteis para a produção cultural dos dias de hoje.
Temos visto muitas propostas diferentes a incorporarem as criaturas desenvolvidas por Lovecraft nos seus universos e videojogos, mas o que Starless Abyss propõe é verdadeiramente original. Não fosse apenas o facto de ser um sci-fi turn-based strategy deckbuilding roguelike (o género faz lembrar um nome tipicamente ibérico, tão comprido que parece pertencer à aristocracia), mas mesclando essa proposta com os Deuses Antigos a ameaçarem a Terra, no cosmo não assim tão distante.
Desenvolvido pela Konafa Games e publicado pela No More Robots, Starless Abyss foi lançado a 25 de abril de 2025 para PC via Steam, e como já percebemos pela sua auto-definição de género, combina estratégia por turnos, combate espacial e elementos narrativos inspirados em H.P. Lovecraft, num pacote que nos traz uma experiência extremamente desafiante.
No universo de Starless Abyss, a Terra sucumbiu perante o poder dos Eldritch, mas cabe-nos a nós, enquanto um dos Proxima, um ser despertado de um sono criogénico com a missão de enfrentar essas ameaças interdimensionais. A narrativa vai-se desenrolando através de escolhas estratégicas e batalhas difíceis que testam a nossa sanidade, mas sobretudo a nossa determinação.
Starless Abyss possui mais de 160 cartas disponíveis, o que nos permite criar baralhos únicos combinando cartas de seis facções distintas, cada uma com habilidades e sinergias próprias. Com “tipologias” distintas, é fácil perceber o enquadramento de cada carta e a forma como podemos optimizar a sua presença no nosso baralho. As cartas que possuem radiação são equivalentes ao que muitos jogos apresentam como veneno, infligindo DoT aos inimigos, e as cartas de turrets permitem-nos criar sistemas de defesa automática que não são dependentes dos nossos pontos de acção.
A sanidade é um indicador-padrão de qualquer jogo que se preze dentro do universo lovecraftiano, e aqui é possível sacrificá-la para utilizar cartas de ritual extremamente poderosas que podem alterar o curso das batalhas, oferecendo-nos uma arriscada mecânica de elevado risco-recompensa.
Com uma camada de meta-progressão apelidada de sistema de D.I.C.E., encontramos decisões importantes entre combates que são influenciadas por este sistema, adicionando alguns elementos de aleatoriedade ao qual temos de nos adaptar estrategicamente. Ainda na progressão tipicamente roguelike: cada partida é composta por quatro actos com caminhos ramificados, encontros aleatórios e bosses desafiadores, com o avanço em cada run a beber da influência directa de Slay the Spire.
Com uma quadrícula trazida dos jogos de tabuleiro, o combate em Starless Abyss é táctico e baseado em turnos, onde o posicionamento das nossa naves e a gestão dos nossos parcos pontos de acção – que utilizamos para jogar cartas – são a charneira entre a derrota e o sucesso. Cada nave possui habilidades únicas, e conhecê-las permite-nos um eficiente uso das nossas cartas, permitindo-nos enfrentar o perigo elevado que as entidades cósmicas representam.
Mesmo em batalhas onde o “tabuleiro” cósmico se encontra visualmente preenchido, a estética pixel art detalhada de Starless Abyss mantêm a sua beleza e leitura de todos os elementos do jogo, com designs que contrastam a beleza do espaço com o terror das criaturas lovecraftianas.
Sendo um fã dos ingredientes separados que Starless Abyss nos traz, deckbuilders, turn-based strategy e roguelike, seria de estranhar que no mínimo a curiosidade não me levasse a conhecê-lo a fundo. Mas na realidade o seu segredo é esse mesmo: uma combinação única de construção de baralhos, estratégia táctica e é claro, a narrativa de horror cósmico embebida dos mythos de Lovecraft. Para fãs de Slay the Spire, e não só, uma batalha espacial contra os Deuses Antigos onde a nossa arma perante a sua superioridade numérico e de poderio só pode ser alcançada com a optimização dos nossos baralhos, e do posicionamento das nossas naves.