Hitman: World of Assassination. Uma antologia que mais parece um (excelente) simulacro de ‘Como assassinar gente terrível’ em que controlamos um sujeito com enormes semelhanças a um daqueles bonecos dos anos 90 (os ‘Crash Dummies’), que na versão de 2016 da IO, iniciava a viagem desprovido de moral ou emoções. Foi assim que vi o Agente 47, o protagonista de toda uma trama intensa que envolvia espiões, experiências científicas, uma organização internacional profundamente terrível e tudo o que acompanham estes pormenores. Quando a IO Interactive se lançou na série, iniciou um processo diferente para o Agente 47, um que parecia muito similar ao passado mas que acabou por ter outro desfecho, principalmente do ponto de vista do storytelling.

Na primeira entrada do World of Assassination, somos colocados em Paris para tratar de dois alvos que estariam envolvidos numa fuga de informação de agentes internacionais, tratando do assunto da melhor forma possível. À medida que o jogo se vai desenvolvendo, certos pormenores começam a ganhar mais força, com o Agente 47 a ser mais protagonista do que se pensava. Aos poucos, aquele pedaço de barro humano aos poucos parecia querer se moldar e se tornar mais humano. Não sei se por osmose, ou por outra razão qualquer, o facto é que a figura central de Hitman caminhava para se tornar algo extremamente diferente.

A grande crítica/observação que a maioria dos utilizadores tecia é que o Agente 47 era um ser sem capacidade de se ligar aos outros, um sociopata incapaz de mostrar emoções e que, apesar de acabar por ajudar o ‘bem’ a prevalecer no final da trilogia, não deixava de ser uma tela em branco. Porém, isto é um erro.

A partir daqui entram em jogo os malditos spoilers, e, por isso, ficam avisados.

Agente 47 começa em Hitman 2016 sem qualquer pigmento marcado na sua tela, mas à medida que vamos terminando os mapas, há um desenvolvimento da personagem, dando o salto em absoluto na sequela Hitman 2, quando 47 volta a se encontrar com Lucas Grey, antigo colega do orfanato e que também foi vítima das mesmas experiência, sendo que ambos são clones. Esta revelação altera em 47 algo, começando a mostrar uma mão cheia de emoções, a começar pelo humor, preocupação e reflexão.

Quando Grey é assasinado por um grupo de agentes da Providence, há um sinal de preocupação antes da morte do colega de infância, dando uma prova viva que não é simplesmente um ser sem compaixão e sentimentos.

No mapa Chongqing de Hitman 3, na cena de abertura do mapa, o Agente 47 aparece junto a um raile, junto de uma transeunte que vai desabafando com este desconhecido. Se não mexerem o vosso ‘boneco’, vão ter direito a uma interação que demonstra uma evolução brutal do protagonista da série. No diálogo, a desconhecida vai falando que combinou um encontro com uma antiga amiga, demonstrando preocupação com o atraso desta, com o Agente 47 a oferecer curtos, mas sábios, conselhos.

Marquei a negrito talvez a parte mais importante do diálogo:

Desconhecida. ‘Viste uma rapariga de cabelo curto com uma mala verde pequena por aí?

Agente 47. ‘Desculpa, não vi.’

Desconhecida.’Merda. Ela disse-me que ia se encontrar comigo aqui.’

Agente 47. ‘Ela está provavelmente só atrasada.’

Desconhecida.’Sim, pois… ela na universidade era de confiança, foi a minha tábua de salvação. Ela dava-me sempre as anotações das aulas, e nunca me deixava à espera desta forma. Às vezes penso que ela mudou demasiado.’

Agente 47. ‘As pessoas mudam.’

Desconhecida.’É estúpido, eu sei, mas eu tenho medo que ela já não quer saber de mim. Que ela efectivamente mudou e que eu fiquei na mesma. Talvez sou um apenas um fardo.’

Agente 47. ‘Ela não combinou contigo encontrarem-se hoje à noite? À chuva? Ninguém faz isso se não se importarem.’

Desconhecida. ‘Isso, é… verdade. Agora sinto-me uma idiota por ter combinado ela vir ter comigo à chuva. Ela vai estragar os sapatos dela só para irmos beber um copo’

Agente 47. ‘Talvez possas pagar a conta.’

‘(Risos) Boa ideia!’

A conversa termina assim, o 47 arruma o guarda-chuva e começamos a missão. Se a nossa atenção não tiver nesta troca de pensamentos, facilmente escapa talvez o momento de transmutação do protagonista, perdendo um dos pontos mais importantes da história de 47.

A narrativa por detrás do jogo é delicadamente esculpida, sem ter de ser directamente apresentada ao jogador. Certos diálogos, expressões, emoções e pormenores visuais vão tentando oferecer a revelação de que o Agente 47 está a mudar e a se tornar algo que todos pensavam ser impossível: humano. Não houve necessidade da IO Interactive em dizer explicitamente ‘Olha, o boneco sem capacidade emocional afinal está a se desenvolver para algo diferente!’. Não, o jogo vai deixando pistas e libertando ideias através de diálogos, com certas acções de 47 a revelarem uma mudança ténue mas suficiente, especialmente para aqueles que se entregaram à trologia do início ao fim.

Como no diálogo em Chongqing, ‘As pessoas mudam’. Não só fica evidente que o próprio sabe do poder da palavra mudança, como consegue soprar a palavra ‘pessoas’, reconhecendo que ele também faz parte de todo este corpo humano que se move diariamente em direção a algo.

No mundo dos videojogos estamos sempre à procura de algo novo, especialmente no que toca ao ‘storytelling, do elaborar de narritvas e do conseguir ligar isso aos objectivos pelo qual o/a nosso/a protagonista se move. Em Hitman: World of Assassination foi apresentado uma forma diferente de contar uma série de histórias, e que talvez passou despercebido à maioria do público.

Para mim foi revelador quando rejoguei a maioria das missões novamente, e fui sorvendo todos os pormenores, ouvindo todas as conversas, me apercebendo de que por detrás dos assassinatos, contratos, objectos, pessoas, alvos, vítimas e informações estava sempre mais um detalho à espera para ser decifrado.

Efectivamente, o humor negro é talvez o pormenor que grita mais alto ‘o 47 é humano, ele só não quer é demonstrá-lo’, com as várias tiradas humorísticas a revelarem traços importantes de um protagonista que começou por ser um pedaço de barro sem forma, destinado a um só fim… eliminar alvos. No término da antologia, o Agente 47 continua a ser chamado de Agente 47, continua a ser um hitman, mas finalmente abraça o seu lado humano. E não há nada mais perigoso que um assassíno que sorri de forma consciente.