À Margem do Tempo: A Redescoberta de Paradise Café
No labirinto de pixéis que compõem a história dos videojogos portugueses, há tesouros escondidos à espera de serem redescobertos. Entre cassetes gastas e memórias à beira do esquecimento, há uma relíquia chamada Paradise Café – um jogo para ZX Spectrum que, em 1985, falou baixinho aos jogadores portugueses antes de mergulhar no silêncio do tempo.
Para alguns, era apenas um eco distante, uma lembrança nebulosa entre tantos títulos da era de ouro dos 8 bits. Para outros, tornou-se um objeto de culto, mencionado em conversas nostálgicas sobre uma época em que jogar era também um ato de imaginação. Agora, quatro décadas depois, Paradise Café renasce das cinzas digitais, pronto para reconquistar seu lugar na consciência coletiva dos amantes de videojogos em Portugal.
O que torna esta obra uma peça tão singular no mosaico da cultura digital portuguesa? Talvez seja o enigma que envolve a sua criação, ou o modo como, ainda em 1985, lançou perguntas que os videojogos só muito mais tarde ousariam fazer. Para perceber a verdadeira dimensão desta obra, é preciso regressar aos corredores sombrios do Paradise Café original, onde um autor anónimo, conhecido apenas como Damatta, desenhou um universo que parecia falar de um futuro ainda por vir.
Neste artigo, vou conduzir-vos pela história singular deste videojogo, desde as suas origens discretas até ao seu regresso inesperado. Pelo caminho, ouviremos os testemunhos de Filipe Veiga, Gonçalo ‘Shiryu’ Lopes, André Leão e Zé Pedro – quatro figuras com perspetivas distintas que ajudam a compreender o valor e o impacto de Paradise Café.
Esta é mais do que a história de um jogo. É a crónica de uma paixão que atravessou gerações.

Nasceu na Margem, Cresceu no Imaginário
Portugal, meados dos anos oitenta. A juventude começava a explorar mundos distantes através dos primeiros computadores pessoais que chegavam às casas da classe média. Entre eles, o ZX Spectrum destacou-se como um artefacto quase mágico – um teclado de borracha que escondia universos inteiros, capazes de transportar os jogadores para novas fronteiras digitais.
Foi neste contexto em ebulição que Paradise Café apareceu – sem grandes anúncios, quase como um sussurro. Assinado apenas por ‘Damatta’, uma figura que continua envolta em secretismo, o jogo destacou-se como uma peça invulgar no panorama nacional. Nada se sabe sobre quem o fez, o que o motivou ou que outras ideias terá deixado por concluir. Mas deixou-nos este jogo: uma cápsula encriptada de um tempo e de uma visão que continua a intrigar.
Paradise Café não era um jogo qualquer. Num cenário de um café sombrio, o jogador assumia o papel de um personagem que deambulava pelas ruas de uma Lisboa fictícia, imersa em crimes e vícios. O objetivo? Procurar sexo com prostitutas, comprar e vender droga, e até cometer actos de violência, como roubar e matar. Em vez de se limitar a ser mais um jogo de mecânicas simples, Paradise Café mergulhava de cabeça numa crítica à sociedade portuguesa da época, abordando temas como a prostituição e a criminalidade de uma forma crua e direta, tudo envolto num mistério que fez deste jogo uma peça singular no panorama dos videojogos.
A obra de Damatta foi mais do que um simples jogo: foi um reflexo da sociedade portuguesa dos anos oitenta, com uma carga transgressora e polémica que o tornou inesquecível. Para Zé Pedro, da Larvae Records, que criou a nova edição comemorativa do quadragésimo aniversário do jogo, embora Paradise Café fosse limitado em termos de gráficos e jogabilidade, a sua fama cresceu graças à violência explícita e às passagens sexuais que o tornaram controverso. “Todo o mistério em torno do autor Damatta exponenciou ainda mais a aura enigmática em torno do jogo”, explica, destacando como a obra abordava costumes da época, desafiando normas sociais e tornando-se um marco para uma geração que vivia as primeiras décadas de liberdade pós-Estado Novo. O impacto de Paradise Café não se deu apenas pela sua transgressão, mas também pelo modo como se espalhou, por meio oral e da troca de cassetes, num contexto em que a disseminação de novos jogos ainda era um processo informal. Como Zé Pedro observa, “o boca a boca e tape trading habitual de jogos mais underground, acabou por proliferar massivamente Paradise Café.”, consolidando-se como um fenómeno, cujas dimensões totais ainda podem não ser totalmente compreendidas até hoje.
Os gráficos, apesar das limitações cromáticas do Spectrum, eram incrivelmente detalhados para a época. Cada personagem do café parecia ganhar vida, com diálogos curtos, mas carregados de significado, que passavam mais do que simples informações – eram pequenos fragmentos de personalidade. A atmosfera criada, mesmo com o hardware restrito, mergulhava o jogador numa sensação constante de mistério e melancolia, algo que persistia bem depois de o computador ser desligado.
Filipe Veiga, figura central da Teknamic Software, lembra-se bem do jogo para a máquina criada por Sir Clive Sinclair: “Embora não tenha sido o primeiro jogo português, nem o único lançado nos anos 80, Paradise Café é, com certeza, o mais popular da sua época – mas não pelos motivos que se esperaria. Tecnicamente, o jogo era medíocre para os padrões de 1985: jogabilidade limitada e gráficos muito rudimentares”. Veiga ainda acrescenta: “Ainda assim, terá sido um dos jogos mais pirateados em Portugal. Quem tinha um ZX Spectrum, se não o tivesse jogado, pelo menos teria ouvido falar dele, devido às cenas explícitas de sexo e violência”. Contudo, não foi só isso que Paradise Café fez para que hoje falemos do jogo. “A figura misteriosa do autor, Damatta, contribuiu para a construção de um mito que perdura na memória coletiva”, conclui o meu entrevistado.

Entre o Mito e a Memória: Paradise Café Quarenta Anos Depois
Quarenta anos são tempo suficiente para transformar completamente tanto a tecnologia quanto a cultura. O universo dos videojogos mudou de forma irreconhecível desde os tempos do ZX Spectrum. Contudo, há algo intemporal nas boas histórias, nas experiências que tocam a alma – e Paradise Café revelou-se uma dessas preciosidades raras.
Em 2025, quando muitos jogos daquela época já tinham sido esquecidos, soterrados sob montanhas de inovações tecnológicas, Zé Pedro embarcou numa missão que parecia quase impossível: trazer Paradise Café de volta para uma geração acostumada a gráficos fotorrealistas e mundos abertos sem fim.
Porquê relançar Paradise Café? Zé Pedro, jogador de Spectrum, e que ainda mantém um, afirma que o jogo é “indubitavelmente o mais mediático (e polémico) jogo nacional jamais criado” e que é digno de ter uma “homenagem justa e sentida aquando do seu quadragésimo aniversário”. Embora já suspeitasse de que não obteria uma resposta, perguntei como foi o processo de recuperação do jogo. As minhas suspeitas confirmaram-se. Isso leva-me a acreditar que há quem saiba quem é Damatta, mas que prefere manter o anonimato que, até hoje, é preservado.
Zé Pedro não esconde o entusiasmo com o impacto que o relançamento de Paradise Café teve junto do público. “As reações foram avassaladoras e excederam totalmente as nossas melhores expectativas”, afirma, sublinhando o alcance inesperado da iniciativa. A edição, inicialmente pensada como uma tiragem limitada a uma centena de cópias, teve de ser ampliada várias vezes para dar resposta à procura crescente. “A comunidade retrogaming acolheu efusivamente o lançamento e percebemos rapidamente que o Paradise Café era um fenómeno transversal também a outros nichos, que também o receberam de forma entusiasta”, acrescenta. O jogo, que durante décadas permaneceu envolto em mistério e memória oral, revelou-se agora como um símbolo de culto capaz de unir diferentes gerações e comunidades em torno de uma peça única da história dos videojogos portugueses.
A nova edição comemorativa de Paradise Café foi amplamente elogiada por figuras ligadas à cena retro nacional. Filipe Veiga, da Teknamic Software, não poupou elogios ao trabalho da Larvae Records: “Está muito bem produzida – ao nível das edições de ZX Spectrum da Teknamic. A impressão é elegante, com efeitos de relevo que não se veem noutros lados”. Para Veiga, o relançamento era inevitável: “afinal, celebram-se os 40 anos do jogo português mais infame de sempre”. Depois remata a sua resposta com: “Para o bem e para o mal, Paradise Café faz parte da nossa história.” Gonçalo Lopes, entusiasta do ZX Spectrum e colecionador de videojogos, sublinha a importância da preservação, mesmo quando envolve obras controversas: “É sem duvida um marco na cultura dos videojogos nacional e deve ser preservado mas talvez só explicado às mais jovens correntes quando tiverem 18 anos.”
Já André Leão, figura central da comunidade Spectrum em Portugal, aponta que o interesse pelo jogo nunca desapareceu totalmente: “Com o surgimento do Museu LOAD ZX (…), com o advento do The Spectrum, com a própria massificação do [blogue] Planeta Sinclair, (…) e agora com este lançamento do Paradise Café, numa versão comemorativa dos 40 anos, que inclui um ecrã de carregamento diferenciado, houve uma renovação no interesse da comunidade por este jogo, se é que alguma vez deixou de haver.” Destaca ainda o design moderno e o cuidado com a produção: “A cassete e todos os conteúdos estão fabulosos.” Para Leão, esta edição é um contributo valioso para a preservação da memória do jogo e poderá até alcançar novas gerações.

Do Recreio ao Trono: Como Paradise Café se Tornou uma Lenda
Para perceber o verdadeiro impacto de Paradise Café, é preciso recuar até à revolução cultural que o ZX Spectrum desencadeou em Portugal. Nos anos oitenta, o país ainda assimilava as mudanças trazidas pelo 25 de Abril e preparava-se para entrar na Comunidade Económica Europeia – o que só viria a acontecer em 1986. O Spectrum não era apenas um computador. Era uma janela aberta para um mundo novo, desconhecido e cheio de possibilidades.
Paradise Café é considerado um marco do software nacional, não pela sua qualidade técnica, mas porque, como diz André Leão, “nunca antes os jogos portugueses tinham sido tão falados” e porque abordava, de forma inédita, “temas como violação, roubo, drogas, prostituição ou homossexualidade”, algo ainda pouco comum numa sociedade, ainda por cima livre de ditadura há pouco mais de dez anos, que “não estava habituada a que se visse e se falasse de forma tão aberta” sobre esses assuntos. Esse impacto cultural manteve-se ao longo do tempo, tendo o jogo “passado praticamente pela casa de todos os adolescentes que tinham um ZX Spectrum” e continuando a ser discutido hoje em dia, inclusive fora de Portugal. Ainda assim, Leão lamenta que “se fez muita coisa boa cá dentro que não está a ser devidamente valorizada”, como o caso de City Connection 128K, que considera “infinitamente superior a Paradise Café em todos os aspectos”, mas que “desperta muito menos interesse junto da comunidade nacional”.
Esta democratização tecnológica teve um impacto profundo na cultura portuguesa. Para muitos, o ZX Spectrum representou o primeiro contacto com a programação, com a lógica computacional, com a ideia de que era possível não apenas consumir conteúdo, mas criá-lo. Era uma ferramenta de empoderamento intelectual numa sociedade ainda a recuperar de décadas de isolamento cultural.
Paradise Café emergiu deste caldo cultural como um exemplo perfeito do que era possível quando a criatividade encontrava a tecnologia. Não era um jogo criado por uma grande empresa com recursos ilimitados; era o produto da visão de um indivíduo, trabalhando provavelmente num quarto escuro iluminado apenas pela luz azulada de um monitor catódico.
O jogo tornou-se, assim, mais do que entretenimento: era uma expressão cultural autêntica, um artefacto que refletia o zeitgeist de um Portugal em transformação, situado entre o tradicional e o moderno, entre o local e o global.
Como recorda Gonçalo Lopes, “todos sabíamos quem era o Reinaldo mesmo que ninguém tivesse sequer o jogo em si”. Paradise Café circulava como mito urbano nos recreios escolares, um artefacto proibido em volto de um misticismo muito próprio. Para Gonçalo, o jogo “era sem dúvida um pioneiro na simulação de crime, sexo, drogas e acima de tudo ofender o status quo”, abordando temas ousados que antecipavam o que a indústria internacional viria a explorar anos mais tarde. Apesar das limitações técnicas, destacava-se pela imprevisibilidade e liberdade de ação: “a próxima porta, é um ladrão, um guarda, uma senhora da noite ou entrada para o lendário Paradise Café?” Não é por acaso que Gonçalo remata com convicção que “primeiro estará sempre o Paradise Café no topo das listas, no pódio, no trono”, reconhecendo-lhe um lugar cimeiro na história do software português.
Hoje, Paradise Café é menos lembrado pelo que realmente era e mais pelo que representou: um momento raro em que o software português conseguiu ser simultaneamente controverso, popular e culturalmente significativo. O jogo sobreviveu à obsolescência das máquinas que o fizeram correr, à precariedade dos registos da época e até à crítica técnica, mantendo-se vivo na memória coletiva como símbolo de um tempo de descoberta e transgressão. Talvez nunca saibamos exatamente onde termina a realidade e começa o mito, mas essa ambiguidade só reforça o seu lugar único na história dos videojogos em Portugal.

Ainda Há Café: O Jogo que se Recusa a Ser Esquecido
A edição comemorativa de Paradise Café não é apenas um exercício de nostalgia – é um ato de preservação cultural e um reposicionamento da história dos videojogos portugueses num contexto mais amplo. Ao trazer de volta este título quase esquecido, Zé Pedro e sua equipa trouxeram para o centro do debate sobre a importância de preservar o património digital português.
A reedição de Paradise Café é, para Zé Pedro, mais do que um simples resgate nostálgico – é um gesto de reconhecimento histórico. “Embora o Paradise Café fosse bastante limitado a nível de gráficos e jogabilidade, tornou-se massivamente conhecido devido à violência e passagens sexuais nele contidas”, afirma, sublinhando que o jogo “acabava por contextualizar historicamente alguns costumes não tão brandos da década de 80”. Esta redescoberta permite não só olhar para trás, mas também medir o impacto cultural que talvez nunca tenha sido devidamente compreendido: “Talvez esteja por aferir a total dimensão do impacto causado e alcance atingido nessa altura!” O entusiasmo gerado pela reedição atravessa gerações – “sabemos que gerações mais recentes também acabaram por sucumbir ao apelo de ser um aniversário redondo de um jogo incontornável” – e levou mesmo a Larvae Records a reservar-lhe um lugar especial no seu catálogo: “Esta edição realizou-nos bastante, razão pela qual lhe reservamos o código de lançamento Nº100 do nosso catálogo que estava guardado há já algum tempo para algo especial.”
O infame jogo de Damatta é hoje uma peça quase acidental de arqueologia digital – e talvez por isso mesmo, tão fascinante. “O jogo foi desenvolvido apenas como uma mera brincadeira dentro de portas e que depois extravasou o círculo de amigos onde foi partilhado, não tendo o seu criador alguma vez tido a noção da projeção que Paradise Café teve”, diz André Leão. Apesar da sua origem marginal e da circulação informal, o jogo sobreviveu ao tempo – não só tecnicamente, como simbolicamente – e tornou-se num raro exemplo de revalorização cultural. “É um facto que no que toca a Paradise Café existe essa tal revalorização cultural, seja lá ela qual for.” Leão, que tem estado ligado à preservação de mais de mil programas portugueses para ZX Spectrum, não esconde a frustração ao ver outros projetos mais ambiciosos esquecidos: “Fez-se muita coisa boa cá dentro que não está a ser devidamente valorizada e que nada indica que no futuro o venha a ser.” E deixa também um alerta: “Têm os estrangeiros mais interesse pelos jogos nacionais, do que a própria comunidade portuguesa, e isso fere-me o orgulho (e deveria ferir a todos). Pode ser que estas novas pessoas que agora estão a regressar ao ZX Spectrum, mudem este paradigma. Espero que sim…”
Paradise Café é mais do que um jogo obscuro da década de oitenta – é, como diz Filipe Veiga, “o primeiro jogo português que se tornou famoso por causa da pirataria”. A sua circulação em cassetes copiadas, passada de mão em mão, garantiu-lhe uma notoriedade que, segundo o mesmo autor, acabou por “abafar muitos outros jogos portugueses interessantes da mesma altura”. Gonçalo “Shiryu” Lopes reforça essa importância simbólica, afirmando que “há livros que ainda não foram escritos sobre os autores portugueses que fizeram jogos de 8 bits” e que Paradise Café “é o pináculo da produção nacional”. No entanto, esta redescoberta levanta questões mais profundas sobre o valor histórico e cultural destes jogos: “É uma arqueologia digital feita com ferramentas muito rudimentares”, nota Filipe Veiga, apontando o esforço necessário para “recuperar fragmentos e tentar perceber quem são estas pessoas”. Afinal, preservar jogos como Paradise Café é preservar também a memória de uma geração que programava entre a precariedade e o improviso.
Como os fregueses do místico Paradise Café, somos todos viajantes passageiros neste espaço entre memória e imaginação, entre história e possibilidade. E enquanto houver curiosos dispostos a abrir a porta deste estabelecimento digital, a busca por significado continuará – um pixel de cada vez.















Comments (3)
Olá Filipe.
O artigo está muito fixe. Parabéns.
Se me permites o comentário e porque falas muitos em preservação (e o Gonçalo fala até em livros por escrever e afins), nesta frente era bom detalhar o imenso trabalho já feito.
O André, fundador do Planeta Sinclair, é o autor do livro “Os Programadores Portugueses”, lançado pelo Museu LOAD ZX onde ele assume também o papel de responsável pela Preservação de Software. Este livro dá vida à história de preservação dos tais 1000 programas referidos no artigo.
Que fique claro que não digo isto para promover o livro – até porque está esgotado há muito. Faço-o apenas porque acho justo e porque há imenso trabalho de suporte a tudo o que hoje observamos estupefactos – como a história do único Paradise Café.
Abraço.
Gostei do artigo e sintetiza muito bem aquilo que disse. Quem sabe o Filipe faça no futuro um artigo sobre o Museu LOAD ZX. Acho que iria dar um artigo muito interessante. :)
Excelente artigo! Devias escrever um assim todos os dias, dia sim, dia não dois… pelo menos! :)