Tenho que confessar que sou uma pessoa mentalmente doente. Ou pelo menos assim parece. Nos últimos dias ando com uma obsessão por Cavaco Silva, actual Presidente da República de Portugal, figura incontornável da História política do mesmo país, pessoa de quem ninguém parece gostar mas com a qual ninguém parece estar incomodado, por mais questionáveis que sejam as declarações e as decisões que vai fazendo e tomando, e sobretudo que tem feito e tomado nestes últimos mandatos, mais ainda nos últimos meses; só me vem o seu nome à cabeça, ando obcecado com a pessoa, talvez para compensar a inacção e a passividade colectivas. Talvez se houvesse mais portugueses do que estrangeiros a questionar as acções de Cavaco, o seu nome não me andasse a sair tanto pelos dedos e pela boca.

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Por falar em boca e Cavaco, bem-vindos à terceira, talvez quarta, edição da Hora do Meh, não tenho a certeza; na Hora do Meh, matam-se jogos “meh”; há várias semanas atrás usámos uma katana, há menos semanas eu próprio fui a arma do crime; hoje usaremos Cavaco Silva.

O primeiro jogo que vamos matar é Nevermind, de Flying Mollusk. Por questões de auto-preservação, uma vez que Cuba e Portugal vão tendo cada vez menos diferenças entre si, é importante referir que a persona à qual vamos recorrer para estes cenários macabros a partir deste ponto em diante não é, na verdade, Cavaco Silva o político, mas o meu vizinho do quinto esquerdo, que também se chama Cavaco Silva.

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Soltem o Cavaco. Cavaco Silva foi solto. Está nu, ruge; dirige-se para Nevermind, de quatro patas. Mostra a língua, olhos vazios, sem expressão, espuma da boca, e abocanha o jogo; ferra-lhe os dentes, rebola no chão. Deixemos assuntos de animais com animais, e enquanto o meu vizinho se entretém a destruir Nevermind, falemos deste.

Nevermind é um jogo em primeira pessoa no qual jogadores exploram os subconscientes e memórias dos seus pacientes, e resolvem puzzles nestes para ajudá-los a ultrapassar os seus demónios pessoais. Mais um.

Os olhos de Cavaco estão vermelhos; as suas narinas estão bem abertas, inspira e expira profundamente, sacode a cabeça com os dentes serrados no jogo em todas as direcções, para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo, e pára, em intervalos irregulares.

A gimmick principal de Nevermind é poder usar-se sensores de biofeed de uma lista de marcas para tornar a experiência mais imersiva e assustadora. Isto porque Nevermind também é um jogo de terror. A experiência, no entanto, é absolutamente independente deste tipo de periféricos – não usei um sensor quando joguei – o que é curioso é que o terror infligido aos jogadores é baseado no ambiente de jogo, em sons e imagens arrepiantes e perturbantes; pergunto-me como é que a experiência teria ficado mais assustadora sem elementos dinâmicos para tal. Nevermind até assusta eficazmente, não fiquem com a ideia errada, não quero desprezar a única coisa que faz bem.

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O jogo tem três níveis. O último é tão mau que eu, no lugar do estúdio, teria vergonha de o lançar em Early Access, regime do qual o jogo já saiu. Os dois primeiros são experiências interessantes a nível audiovisual, construídas à volta de puzzles que não fazem sentido; os jogadores coleccionam fotografias espalhadas pelo mundo de jogo, como em tantos outros jogos do género, e no fim ordenam-nas segundo um critério obtuso, pouco claro, e até mesmo contraditório (entre níveis).

Cavaco Silva ruge; está de cócoras com o jogo nas mãos, por cima de si; puxa para os lados, um braço em cada direcção; loucura desvairada na sua expressão; rasga Nevermind em dois. Põe as duas metades na boca cheia se sangue, mastiga, custa-lhe, continua a mastigar, engole; bate no peito, ora com uma palma, ora com outra.

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Nevermind está morto.

Stairs, de GreyLight Entertainment, também é um jogo de horror em primeira pessoa passado num espaço surreal que também vai acabar na boca de Cavaco Silva. Em Stairs, os jogadores são perseguidos por alguma coisa, e encontram umas escadas em espiral rectangular com um número absurdo de degraus, num espaço abandonado onde houve um homicídio, que unem vários níveis que nada têm a ver uns com os outros. Também se trata de um jogo de terror linear, com ideias interessantes, construído à base de puzzles desinteressantes e de pouca qualidade.

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Cavaco salta.

Se tivesse que resumir o mais recente (e talvez único) trabalho de Greylight a uma frase, de forma bastante infeliz e redutora, mas justa, seria que já usei alguns dos sons que encontrei em Stairs em jogos de game jams que fiz em menos de 48 horas.

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Cavaco aterra, traz Stairs consigo, preso nos maxilares.

Se o leitor estiver interessado em fazer jogos e um dia quiser fazer um como Stairs, quando chegar à parte de tratar do audio procure no Google por efeitos de som em public domain. Mas, como para Nevermind, não fiquem com a ideia errada, o audio em Stairs não é especialmente mau ou o pior do jogo, pelo contrário; é, sim, uma forma correcta de julgar o todo.

Cavaco Silva está deitado de costas, desfaz o jogo aos pedaços com as suas unhas das mãos, também dos pés; caiem ao chão, chovem à sua volta, morde, mastiga, vai levando pedaços à boca.

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Levanta-se e, antes de cuspir tudo para o chão, bate outra vez no peito com as duas mãos, várias vezes, de boca cheia, satisfeito. De seguida, de novo de cócoras, olhos cerrados, músculos contraídos, defeca sobre jogo. Os seus olhos brilham.

Stairs está morto. Num gesto, ainda de cócoras, de pernas afastadas, Cavaco leva o que resta do jogo à cara com as duas mãos, sem sacudir, sem perder nada, a poia toda, e mete-o todo na boca; engole.

Comem tudo, estes animais. Até à próxima Hora do Meh.