Active Shooter é um jogo de Roleplay onde um dos personagens, um fortuito dia, decide levar uma arma para o Liceu e atirar sobre os colegas. Esta premissa leva-me à seguinte dúvida:

Será que existem temas demasiado sérios para serem jogados?

Quando reli este jogo, como parte da minha pesquisa sobre mecânicas, estávamos em pleno modo de alerta sobre as recentes notícias vindas dos Estados Unidos da América. Um jovem de 19 anos entrou no Liceu Stoneman Douglas e assassinou sistematicamente os seus colegas, colhendo a vida de 17 pessoas no total. Infelizmente, notícias com contornos similares não são raras por todo o mundo. Entre 1967 e 2017 ocorreram 146 incidentes de tiroteios em massa, muitos deles em escolas de Liceu.

Por outro lado este fenómeno é, felizmente, relativamente desconhecido em Portugal. Então, pensei eu na minha inocência, que excelente forma de poder entender um pouco mais as notícias que nos chegam dos EUA. Jogar os eventos numa simulação de Roleplay, tentar entrar na mente dos envolvidos vai-nos possibilitar criar empatia com as vítimas da tragédia.

Ao divulgar o evento, no entanto, pude ver que nem todos pensavam da mesma maneira. Bastantes amigos meus se revelaram preocupados, ou até mesmo enojados que tal jogo existisse ou que alguém se dignasse em jogá-lo. Será que existem temas de mau gosto, ou até mesmo intocáveis?

Setup

Na fase inicial criam-se os personagens. Cada personagem é um jovem de Liceu, e cada jogador interpreta um destes jovens. O nome escolhido para cada jovem é obrigatoriamente escolhido de uma lista de vítimas reais, mortas em eventos semelhantes antes dos anos 60. (os nomes podem ser ajustados) Dessa forma, tenta o designer impressionar os jogadores com a seriedade da situação, sem melindrar a família de vítimas recentes.

A criação de personagem é muito simples, além da escolha do nome, é obrigatório desenhar uma foto de passe do jovem imaginário e responder a três perguntas:

  1. O que conseguiste alcançar esta semana?
  2. O que esperas alcançar amanhã?
  3. O que tencionas alcançar para o ano?

As respostas depois de redigidas na folha de personagem são lidas alto para que todos possam ouvir. Os jogadores podem também escolher o setting, ou seja, nome do Liceu, e período da história em que os eventos decorrem, mas na realidade isso não é muito importante.

Um mapa de liceu vazio pode ser imprimido a partir do PDF, servindo de base para o resto do jogo.

As cenas escolares

Seguem-se uma série de cenas de improviso, começando com os jovens encontrando-se no parque, prontos para iniciar mais um dia de aulas. As cenas acabam quando dois dos personagens saem da área. Eis uma excelente maneira de incentivar a apenas manter as cenas activas enquanto todos estejam a divertir-se.

Cada cena adiciona uma área nova ao mapa do Liceu, e desta forma esse mapa vai crescendo organicamente, sendo diferente de cada vez que se joga. No final de cada cena cada jogador vota no personagem que pensa ser o menos (!) provável de se tornar no Atirador. O personagem segundo (!) mais votado é declarado como vítima. Ele continuará em jogo, mas um adesivo fluorescente com o seu nome é colado em evidência no seu peito, declarando-o como potencialmente falecido no futuro atentado.

Há algo estranho em ter indivíduos de 30 ou 40 anos, sentados a fingir que são adolescentes. Todos nós já fomos adolescentes, e lembramo-nos o quão idiotas éramos nessa altura. Isso pode ter contribuído para um certo clima leve e brincalhão assumido durante as cenas, ao bom estilo das séries sobre a escola secundária. Nelas exploram-se os sonhos, relações e habilidades destes jovens fictícios. Sempre a pergunta paira no ar: quem será o assassino? Mas nenhum de nós é o assassino. Tentamos descortinar, enquanto a cena se desenrola, um possível motivo ou gatilho que explique, mesmo que levemente, aquilo que iria acontecer de seguida. 

Todos passam pela mesma depressão relativa à adolescência, mas ao mesmo tempo são jovens. Correção: somos jovens e cheios de esperança! Nenhum deles merece o que vem de seguida. Nenhum de nós o merece! Qualquer um de nós, dos nossos personagens, teria motivos para o fazer. Mas nunca o faríamos, não seríamos capazes. Mas um de nós foi.

O bullying e a anti-mecânica do “cala-te!”

Uma das mecânicas que é introduzida durante esta fase é a possibilidade, caso dois jogadores concordem, de mandarem calar um terceiro. Esse jogador fica proibido de falar ou interagir com os outros até que a cena acabe, estando permitido apenas a sair de cena se desejar.

A brutalidade desta anti-mecânica, algo que tipicamente nunca se deve desenhar num RPG, coloca em evidência os efeitos nefastos do bullying. É agressivamente didático também para quem a exerce, pois não existe maneira de voltar a interagir com aquele personagem até que a cena acabe. Das poucas vezes que usei essa mecânica sempre me arrependi a meio, por deixar de poder contar com aquele personagem até que a cena acabasse.

O tiroteio final

O Departamento de Segurança Interna dos EUA descreve o termo “Active Shooter” como: “um indivíduo que participa activamente no assassinato, ou tentativa de assassinato de pessoas num agregado populacional confinado; na sua maioria o “active shooter” usa armas de fogo e não existe um padrão para o método de selecção das vítimas.”

Durante esta fase do jogo, que se joga em completo silêncio, o atirador agora finalmente identificado irá deambular pela escola assassinando os seus coleguinhas. O silêncio apenas será quebrado quando o Active Shooter declara alto e bom som o nome de um dos coleguinhas que acabou de morrer.

Em Active Shooter o tiroteio final joga-se como um jogo de tabuleiro, sobre o mapa agora completo da escola, onde as regras são assimétricas entre atirador e vítimas. É altamente improvável que uma delas sobreviva, afinal já todas foram marcadas como sendo vítimas.

A descompressão

Depois de concluído o jogo é altura para recolher os sentimentos e opiniões dos participantes. Todos mostraram-se um pouco revoltados com o facto da fase do tiroteio ser tão assimétrica. Penso que caso as regras fossem ligeiramente menos favoráveis para com o atirador (e.g. o atirador na versão que jogámos pode teleportar-se) teria contribuído para uma maior conexão e empatia para com o seu personagem que tentava escapar.

Apesar de jogarmos com a X-Card na mesa, como era recomendado, não tivemos de recorrer a ela. Isso significa que estávamos todos na mesma página em relação ao objectivo e estilo pretendido. No final, concluímos que foi uma experiência interessante, e mostramo-nos gratos por jogos que nos permitem imaginar acontecimentos que estão fora do alcance da nossa compreensão.

Demasiado sério?

Na Grécia antiga todo o teatro acabava em tragédia. Aparentemente, explorar a tragédia dos outros permitia atingir a catarse, ou seja, o purgar de emoções, nomeadamente do medo. A teoria evolucionária da emoção postula que o explorar das tragédias permite-nos exercitar emoções negativas de modo a evitarmos situações semelhantes no futuro, ou pelo menos sabermos como lidar com elas. E por último, em termos éticos Active Shooter poderá ser encarado como um exercício de Empatia, permitindo exercitar o ponto de vista do outro e portanto crescer moralmente.

Parece-me portanto que não existem temas demasiado sérios para serem jogados. Na realidade, quanto mais sério o tema mais importante será jogá-lo! É claro que o contraste está na forma como o designer e os jogadores abordam o tema. Quanto mais melindroso o tema, maior responsabilidade tem o designer em mãos. Tentará guiar os jogadores, marcando o tom através de dicas mecânicas, mais ou menos subtis. No final, tudo depende da forma sincera e consciente com que os jogadores abordam o jogo à mesa. Quem joga Active Shooter sujeita-se a um grande potencial de aprendizagem emocional. Quantos jogos por aí podem afirmar o mesmo?

Não sei explicar exactamente porquê, mas no final do jogo senti que tinha alcançado e realizado algo muito importante. Tenho a impressão, pelos comentários que recebi dos meus companheiros jogadores que eles sentiram o mesmo. Active Shooter é um jogo em inglês de licença aberta, cujo download pode ser realizado a partir do site goldencobra.org nas submissões de 2014.