Primeiro de três níveis de escapismo

Tenho muito medo da morte. Um medo patológico, petrificante, que condiciona muitas partes da minha vida. Sempre tive medo da morte desde pequeno, pela falta de crença em algo que a transcenda. Diria que é o reverso amargo do meu ateísmo. E é graças a esse medo da morte que sempre fui muito defensivo e protector da minha integridade física, por saber que é essa cautela extremista um dos factores que me separam da morte. A velocidade, essa, sempre foi uma inimiga. E em geral, quase todas as viagens, especialmente as de carro, são efectuadas com as mãos cravadas no volante, os olhos a rolarem entre os três espelhos e o pára-brisas, com muito cuidado pela estrada fora. A velocidade não só nunca me cativou como sempre esteve associada a uma série de riscos. E eu não sou alguém que esteja pronto a correr riscos, quaisquer que eles sejam.

Tenho muito medo da morte, como já disse várias vezes neste artigo, e mais vezes do que me atrevo a vociferar no dia-a-dia. Desde o início deste ano evito aviões, e passei mais de cinquenta horas dentro de comboios para ir-e-vir da Gamescom, sempre a imaginar situações de descarrilamento, muito graças a este medo que comigo coabita. Sou um condutor cuidadoso, sempre dentro dos limites legais e sempre a evitar todos os restantes automobilistas. A adrenalina que muita gente diz sentir a conduzir é-me algo totalmente desconhecida. E é-o pela vulnerabilidade que o meu corpo tem dentro de um veículo de metal com outros veículos de metal e separadores de concreto à sua volta. Seria incapaz de ser um street racer, não só pela minha não-necessidade de aventura e adrenalina, como pelas implicações legais.

need-for-speed-2

Quando pensamos em escapismo, a nossa mente voa invariavelmente para abordagens diametralmente opostas da realidade. Imaginamos que escapamos da realidade por não a aceitarmos, para procurarmos algo melhor, mas falhamos nesse exagero: escapar pode ser uma forma de nos libertarmos dos grilhões que nos prendem ao mundo tangível. Para mim, há um primeiro nível de escapismo, quase superficial, que senti recentemente a jogar Need for Speed. Uma pseudo-libertação, uma ausência de constrangimentos que ultrapassa a barreira da realidade e da diversão. E é, em alguns aspectos, um sucedâneo à vida real.

Neste novo jogo da série Need for Speed, e talvez pelo gigantesco salto entre esta iteração e a última que joguei, já há mais de dez anos, a minha imersão foi muito mais profunda. É verdade que toda a filmagem envolvente, em que as cenas em vídeo são captadas na primeira pessoa ajudam a criar esta imersão, esta sensação de pertença só possível nos videojogos. Mas foi quando me sentei (virtualmente) ao volante do Ford Mustang que o meu escapismo teve início. E após alguns minutos de jogo comecei a libertar-me das minhas próprias constrições da vida real, e a velocidade e o risco assumiram o seu papel. Afinal, o eu que nós somos nos videojogos é imortal.

Need for Speed não tem nada de complicado, complexo ou transcendente nem para o género ou para os videojogos enquanto meio. Mas nessa simplicidade trouxe-me algo inesperado: a possibilidade de fugir dos meus medos, de viver uma série de emoções que na vida real nunca sentiria. E a primeira e mais surpreendente de todas elas foi a inédita adrenalina que senti quando comecei propositadamente a enveredar por um caminho “criminoso”, a causar distúrbios e desordem e a sentir um entusiasmo tremendo a fugir à Polícia. Foi aí que senti uma utilidade de escapismo superficial que nunca tinha considerado num videojogo: a de poder ser uma resposta prática de sentir, ainda que por delegação do eu virtual, a adrenalina e o frenesim da minha condução, da velocidade e da minha atitude ao volante. E todas estas sensações sem aquela voz sempre-presente na nuca a avisar-me dos perigos que corria. Porque o meu corpo estava na segurança do sofá enquanto a minha projecção virtual vivia o risco por mim.

xorih8f8dsbwvfichtzm

É claro que para esta auto-dessensibilização e quase auto-desumanização contribui muito o facto de que na prática nós somos anónimos, indiferentes, quase incorpóreos em Need for Speed. Somos o condutor do qual pouco se sabe, que nunca expressa verbalmente as suas opiniões (e para o qual todos os outros os personagens parecem ter as perguntas e respostas). Mesmo quando temos acidentes nada é preocupante porque esse não o foco do jogo. Não há consequências dos despistes e das colisões em jogo, assim como não as há para nós, separados emocionalmente dessa realidade pelo ecrã da TV. Porque os videojogos permitem este nível de experimentação para além do real, de sentirmos de alguma forma na primeira pessoa uma série de vivências que nunca teríamos na nossa existência mundana, que pode ir à exploração de galáxias a algo perfeitamente terreno para uns, mas verdadeiramente inalcançável para mim, tal como conduzir a alta velocidade, de forma despreocupada.

O outro factor é o extremo realismo que a geração actual já alcançou. A minha submersão no jogo residiu também em ter prazer com algo mundano que na vida real me é algo detestável: a condução pela condução. Dei por mim com alguma facilidade a percorrer as estradas de Need for Sped a alta velocidade, com as luzes dos candeeiros e as partículas ambientais a comporem o cenário e apenas a usufruir virtualmente de um mundo que não é tangível, mas que é suficientemente  palpável para trazer-me emoções que não quero, nem vou sentir na vida real.

6078

E falando ainda mais sobre o que difere este reboot de Need for Speed, ou quais os seus pontos fortes que me mantiveram submerso neste mundo e os momentos menos bons que me traziam de volta à realidade mundana. A tentativa de criar uma espécie de filme com todo o enredo é um gimmick interessante, imersivo mas que tem um revés doloroso para o jogador. Estarmos constantemente a receber SMS (virtuais) e chamadas no nosso smartphone ingame é algo que quebra totalmente o ritmo de jogo, especialmente num título que não tem modo offline nem possibilidade de por na pausa. É verdade que não devemos manusear o telemóvel enquanto conduzimos (na vida real, e elevo esta falha de mecânicas para o campo da pedagogia cívica) mas muitas vezes este contacto constante dos restantes personagens acaba por servir mais para desligar-nos do mundo do que abraçar-nos a ele. Partilharmos os mapas com outros jogadores confere-lhe uma sensação curiosa de coesão, na medida em que podemos “picar-nos” virtualmente e desafiar-nos mutuamente para corridas, drifts, etc., trazendo uma salutar sensação de coabitação a um mundo que sem esse factor ficaria aquém do realismo que apresenta.

Realismo esse, visual e ambiental, obviamente e talvez seja este o segredo da capacidade escapista que Need for Speed me dá. Os controlos, a possibilidade de customizar tudo até ao mais ínfimo pormenor da forma como queremos que o carro reaja à nossa condução, associada a uma exímia execução visual, aproximam esta experiência do que poderá ser o equivalente na vida real. O ambiente nocturno urbano que se estende por quilómetros e que nos submerge numa das experiências mais realistas de street racing e que nos permite, ainda que de forma superficial, projectarmo-nos num mundo com objectivos e fundamentos muito superficiais. Mas que nos permitem viajar de forma despreocupada, a grande velocidade, na segurança, conforto e protecção do nosso sofá.

Tenho muito medo da morte e continuo com um pânico mudo quando tenho de conduzir, especialmente quando tenho a minha mulher e o meu filho no banco de trás do carro. Tenho muito medo das infinitas variáveis que nos podem fazer cruzar a linha da existência. Mas encontrei uma forma segura de me libertar, de experienciar coisas que o meu corpo físico e os meus entraves psicológicos nunca deixarão. E consegui-o através da abstracção virtual de um videojogo.

O medo da morte continua, mas uma parte de mim pode soltar-se, gloriosamente, dos medos que me aprisionam. Há muitas abrangências nos videojogos, muitos planos a serem vivenciados, e a diversão é apenas uma face da mesma moeda que tem o escapismo como bordo. Jogar, é afinal, uma forma de escapar dos limites da nossa vida.