Há duas semanas abri o primeiro Popcorner com Young Justice, um exemplo de como uma boa base de personagens e histórias consegue ser mal adaptada para um jogo e prometi mostrar o inverso no artigo seguinte. Hoje trago-vos Geralt of Rivia, The Witcher.

Para quem não sabe, este personagem é inspirado nas obras do autor polaco Andrezj Sapkowski. A história original Wiedźmin foi um conto publicado numa revista chamada “Fantastyka” em 1986 num concurso em que ficou em terceiro lugar. Nos anos 1990 compilações de contos foram editados em dois livros chamados “Ostatnie życzenie” ou The Last Wish e Miecz przeznaczenia ou The Sword of Destiny.

witcher-4

Até agora, Novembro de 2016, das obras de Sapkowski, apenas The Last Wish está traduzido para português como O Terceiro Desejo, mas existem várias traduções em Inglês para quem quiser. Não só as compilações de contos The Last Wish e The Sword of Destiny como os romances do que se chama a A Saga do Witcher (nunca peguei na obra em Português portanto não sei se há uma tradução para Witcher. Será o Bruxeiro?) Os livros em Inglês e por ordem são Blood of Elves, Time of Contempt, Baptism of Fire, The Swallow’s Tower, Lady of the Lake e Season of Storms. Os quatro primeiros estão já disponíveis em papel ou e-book, Lady of the Lake está anunciado para 2017 e quem sabe sobre o último…

A ordem cronológica dos contos é complicada, assim como o enquadramento destas histórias nos acontecimentos dos jogos. Já os romances são o mais linear possível. Apesar de serem já bastante conhecidas na Europa de leste incluindo terem dado produção a uma série de televisão horrível, só em 2007 quando foi lançado o primeiro jogo da CDProjekt Red é que tiveram a sua primeira publicação em Inglês.

Toda a base da história de Geralt of Rivia, toda a sua postura e códigos, o porquê de ele ser como é, estão mais ou menos resumidos nos contos de The Last Wish.

witcher-1

A organização dos sete contos no livro é curiosa, sendo que existe uma história principal que enquadra os outros seis que aparecem como flashbacks. The Voice of Reason coloca Geralt no templo de Melitele, aos cuidados da Sacerdotisa Nenneke e da sua deusa enquanto recupera de ferimentos de um dos seus trabalhos. Certas interacções dão luz a recordações e vão explicando o seu passado e a sua mentalidade. Apesar de eu considerar que esta história principal fica muito aquém dos contos baseados em histórias que vão reconhecer como versões dos contos infantilizados pela Disney nas últimas décadas, que são muito mais próximos das peças de moralidade que eram originalmente com a sua dose de violência e asneiras e bastante sexo, consegue dar um belo enquadramento aos painéis que nos explicam quem é Geralt.

Aprendemos muito sobre Geralt e o seu mundo nestes contos, desde o seu combate com a Striga que faz a introdução do primeiro jogo até o porquê de tantas princesas presas em torres, das dificuldades de escolher um mal menor a porque algumas curas de maldições com a força do amor não resultam, de crianças surpresa até à razão pela qual as feiticeiras são sempre bonitas, mas nunca bonitas demais, para um livro consideravelmente curto tem um nível considerável de informação.

Eu gosto muito mais de Sapkowski como escritor de contos do que de romances, a sua escrita flui muito melhor em doses pequenas que em longos arcos pois ele tende a enrolar-se e perder-se. É um pouco como um Steven Moffat no Doctor Who, habitualmente genial a escrever episódios contidos em 50 minutos, mas com uma série inteira a seu cargo tem mais buracos de enredo que um filme para adultos.

Falando em filmes para adultos, voltemos ao White Wolf e às suas histórias. Algo que me agrada bastante é o facto do teor adulto dos contos e dos jogos não ser gratuito. São violentos, asneirentos e com imenso conteúdo sexualizado mas com sentido, raramente são assim apenas para garantir o choque ou a venda barata. Se acham que aquela cena entre Yennifer e Geralt no unicórnio foi criada para o jogo só porque sim, leiam The Sword of Destiny e deleitem-se com a descrição de Geralt acerca do desconforto que era praticar o acto do amor e paixão em cima do dele e do seu alívio quando o partiram.

witcher-3

Mas não é só de material adulto e violência que vivem os contos e os jogos, muito bem transposto do literário para o jogável é a opção de escolha. Embora nos livros a opção seja sempre do autor e nos jogos seja nossa, a possibilidade de escolha é a essência de Geralt, alguém que pode sempre escolher porque vê o mundo de fora.

Sendo um mutante, não é aceite por ninguém a não ser quando precisam dele. Nos jogos conseguimos sentir isso, às vezes os personagens mostram admiração outras exprimem asco e tanto Geralt como nós somos obrigados a aceitar. Nos livros, porque parte da magia da leitura é entrar na pele do personagem também sentimos isso. A transposição desses sentimentos e a maneira como conseguimos empatizar com o personagem principal nos dois meios é um feito louvável.

Os jogos tanto no seu universo gráfico, como no enredo e histórias conseguem respeitar a obra, várias alusões são feitas a eventos dos contos e livros, os personagens nunca “saem de personagem” e acima de tudo mantêm-nos a nós como o principal, todos nós somos Geralt. Nós temos que fazer as suas escolhas, nós temos que perceber se aquela bela princesa afinal não é mesmo um monstro (figurativa e literalmente), se aquela aparição que assombra uma casa é mesmo uma ameaça ou se é um espírito amaldiçoado e preso que devemos ajudar, nós temos que fazer as suas escolhas, as nossas escolhas e viver com as consequências delas, e raramente são simples. Tanto as escolhas como as consequências.

witcher-2

Nada é simples neste universo, nada é preto e branco excepto as letras no papel. Ao contrário de muitos estúdios e editoras, a CDProjekt Red conseguiu transpor todas as sombras de cinzento dos contos para os jogos, e deviam ser um exemplo para todos os outros.

Se nunca leram deviam tentar pelo menos os contos. Leiam as BDs da Dark Horse ou procurem versões audiobook e oiçam nos vossos trajectos entre casa e trabalho ou aulas, ou enquanto fazem as vossas tarefas habituais do dia-a-dia. Afastem-se da série de TV como uma Striga foge de prata.

Os jogos… o que dizer sobre qualquer um deles? Se nunca jogaram, comprem e tirem umas semanas de férias, não se esqueçam é de comer e ir à casa de banho de vez em quando.