Lembro-me bem da primeira vez que vi um jogo de Pokémon. Estava eu nos meus 12 e descortinava regularmente as únicas páginas que me interessavam do catálogo da La Redoute (para além da lingerie): A secção dos jogos. Naqueles tempos, as revistas dedicadas ao tema ainda eram colocadas lado a lado com as pornográficas e a mesada nem sempre dava para adquirir estas luxuosas páginas de papel couché. O Desenho-animado ainda não tinha estreado no território e o jogo estava ainda por ser lançado (sim a La Redoute já permitia aquilo que ainda não se chamava “pre-orders”). Espantou-me ver dois jogos com o mesmo nome… Pokémon? A Dobrar? Apanhá-los a todos? A estética dos monstros da capa era particularmente intrigante por ser relativamente minimalista. Aquilo era claramente um Dragão… Só que laranja… Nada de particularmente original. No entanto havia ali um inexplicável magnetismo estético, especialmente naquela tartaruga ninja obesa com canhões na carapaça.

Pokemon + Drogas = Marketing

Pokémon Vermelho ou Azul? A escolha, no meu caso, era fácil de fazer. O resto é algo que muitos da minha geração terão vivido: As trocas na escola, os debates sem fim sobre Pokémon que primos de amigos juravam ter apanhado e o desenho animado que encenava as representações rudimentares dos pokemonstros da nossa equipa. Este contexto catapultou o jogo para além das suas qualidades objetivas por ser um dos primeiros jogos genuinamente comunitário. Pokémon era tão bom de consola ligada como guardado na mochila quando se planeava as excentricidades necessárias para apanhar o Mew.

Joguei Pokémon tarde e quando a versão Silver/Gold chegou ao mercado o meu tecido social à volta do jogo reduziu-se drasticamente. O Desenho animado era uma infantilidade que eu não podia autorizar-me e os meus parceiros de jogos resumiam-se a uns quantos irredutíveis e o meu irmão. Para ele, Silver/Gold terá sido o topo da sua experiência com a saga Pokémon: O Recreio era agora dele enquanto o meu espaço era a nuvem de fumo à porta do lycée e a paralisia de uma existência atormentada pelas imposições do “cool”.

Quando chega Ruby/Saphire a internet já tinha tido a oportunidade de corromper-me às facilidades da emulação numa altura em que o método parecia uma autentica bruxaria digital. Este foi o princípio de um certo desencanto: Isto a fim a cabo é bastante repetitivo. Não fui para além da capa de Diamond/Pearl… Dois cyber-dinossauros? Não me parece. Naquela altura a saga Pokémon vive uma fase relativamente discreta em que a nostalgia e a cultura do hype ainda não existem ou pelo menos em moldes suficientes para conseguir chantagear a audiência mais velha através da promessa de um regresso ao paraíso perdido dos game link cables.

O primeiro episódio a beneficiar de alguma cobertura mediática revivalista é o Black/White. “Este é diferente! A sério!”. À primeira vista parecia que sim. Com isometrias de fazer inveja a quem parou de comprar consolas depois da Super Nintendo, Black/White era tão bom tão bom que representava para a franquia um Moltres a renascer das cinzas. A verdade é que as mudanças tímidas do jogo disfarçavam mal o compromisso voluntário de estagnação que deveria ter sido detectado pela imprensa, nem que a título de advertência para um público susceptível de sentir o peso da rotina. Aborreci-me. Joguei o jogo de uma ponta à outra… E aborreci-me. Estes Pokémon diziam-me muito pouco. O esqueleto dos primeiros jogos era demasiado visível para não sentir o peso da rotina. Umas representações gráficas cada vez mais desinspiradas e presas a 4 golpes e um rodízio de pedra-papel-tesoura. O trunfo principal do guião, o dilema ético da captura de seres vivos para propósitos de entretenimento bélico, é algo que nunca chega a ser respondido de maneira satisfatória sendo abafado por peripécias sonsas onde tudo acaba bem só porque sim. Pegar numa inconsistência narrativa deste tamanho foi um ato que valorizamos pela sua coragem mas cujo fracasso fomos abafando com condescendência: “Também não é para isso que se joga Pokémon”.

Quando chega Pokemon X/Y já estou mentalizado. Desta é mesmo para não comprar. Desta sei que não dá para confiar. Melhor Pokémon desde o original?! Não, não vou comprar. Gráficos nunca antes vistos?! Não, não, não vou comprar. Mecânicas inovadoras?! Personalizar o protagonista e fazer festinhas aos bichos?! Epá não, não, não chega. Ir às cavalitas de um Pokémon?! Epá… Não!

A Sério que é mesmo bom, eu sei que não, eu sei que o outro não era assim tão bom mas este, este pá! Este é mesmo mesmo mesmo bom!!

Epá, foda-se tá bem!

Mais uma vez lá estava eu a jogar a um Pokémon. A Imprensa era categórica. Afinal isto é que era o “comeback”. Isto é que era mesmo diferente e encantador: Que tédio de jogo meus amigos.

O que o Pokémon X/Y traz em novidades perde-o ao colocar uma nova direção em termos de tonalidade: Ingenuidade ao nível do Baby TV e uma aparente confusão entre aquilo que é otimizar contrariedades técnicas e castrar o grau de dificuldade.

Pokémon nunca foi um jogo particularmente difícil mas sempre teve uma certa consciência dos benefícios de ter momentos onde a nossa capacidade de superação é posta à prova. Certos Pokémon eram particularmente difíceis de capturar e as grutas implicavam uma gestão ponderada dos item de modo a sobreviver ao flagelo de random encounters em cenários labirínticos. Com este Pokémon esta dificuldade atenua-se drasticamente. Mal sabia eu que isto seria o pontapé de saída para a alienação definitiva deste jogador demasiado trintão para estas brincadeiras.

Vamos então falar de Pokémon Sun/Moon dentro dos critérios mais subjetivos possíveis (como já vai sendo habitual). Tal como aconteceu com Pokémon X/Y o ecossistema do gaming tanto escrito como comentado prometia mais uma revolução. Um Pokémon diferente mas com elementos semelhantes à primeira geração. Um pouco à imagem do Muk, que faz aqui pele nova com um processo revolucionário de coloração que passa do ultrapassado roxo para o rosa, amarelo, azul e verde… Um must!

Trocam-se os gym leaders por desafios contra Pokémon lendários que, estranhamente, implicam uma sequência de desafios prévios até chegar aos mesmos… Não estaremos aqui a reformular a mesma ideia? E se eu disser que para além destes pokémon lendários devemos enfrentar ainda um desafio que envolve um treinador de Pokémon com um título honorifico e uma preferência por pokémon de um certo tipo? Estão a sentir a mudança?

Não tenho nada contra a rotina. Acho a descrição de grandes mudanças intelectualmente desonesto mas o meu problema com a mesma não vai para além disso: desonestidade. O que me incomoda verdadeiramente é a mudança efetiva e não formulada: A Higienização do jogo e a destruição de qualquer contrariedade na campanha a solo.

Após tantas horas de jogo posso dizer que apenas senti dificuldade no desafio final. Sou um péssimo jogador e Pokémon não é para mim exceção. Estão a ver todos os golpes que envolvem a mudança de status para propósitos estratégicos? São os primeiros a ir ao lixo. Os meus Pokémon têm 4 ataques que fazem danos. Se me sugerem um ataque mais forte? Apago o mais fraco. Jogo Pokémon sem qualquer subtileza e nunca fui castigado por isso. Não tive nenhum Game Over. Nenhum. Qualquer dificuldade potencial foi sistematicamente apagada por um NPC disponível para curar a minha equipa inteira. Obtive praticamente todos os meus Pokémon nas primeiras horas de jogo. Depois desta fase já tinha constituído um conjunto relativamente harmonioso capaz de explorar as falhas elementares dos meus adversários. O Gimmick deste episódio, o Z Power, é um trunfo tão desproporcional que só a duração das cutscenes condicionam o seu uso. Em nenhum momento senti a necessidade de capturar e treinar novos pokémon com “stats” mais apetecíveis de forma a superar os desafios… O mesmo para as questões de estética diga-se de passagem. Dito assim talvez possa dar a ideia que tenha feito algum grind para colocar a minha equipa ao abrigo dos perigos… Nada disso. Não suspendi a minha progressão no jogo a nenhum momento para melhorar os níveis da minha equipa. Entre o nível elevado de random encounters e as centenas de treinadores que se cruzaram no meu caminho todos os meus desafios foram passados com pokémon de nível superior ao do adversário.

Numa entrevista de 2014 Junichi Masuda, questionado sobre o baixo grau de dificuldade de Pokemon X/Y, respondeu da seguinte forma:

“Kids these days or even people who grew up playing Pokemon–everyone is a lot more busy. There are a lot more things competing for a person’s time than there were back then. For example, there are so many free games you can play on your phone now, there’s so many entertainment options, so making it a little easier to play is the reason for that.”

Apesar da enormidade desta afirmação a mesma foi pouco debatida. Temos aqui alguém que considera que o seu jogo no contexto atual deve ser fácil de acabar de modo a criar disponibilidade para os jogos restantes. Uma espécie de formalidade comercial que deve limitar-se a um passeio rápido de modo a permitir algum espaço disponível para alimentarmos o nosso ADD com outras produções elas próprias de despachar. Esta blasfémia mereceria uma rant que eu já elaborei parcialmente num texto anterior.

Não há prazer nas coisas fáceis. Todos os sinais da indústria contemporânea apontam para esse facto. A Comunidade está sedente de desafios. Desde Dark Souls até o mais recente Zelda, todos entendem que um jogo rico em conteúdo e desafios proporciona uma experiência muito mais satisfatória.

Entre X/Y e Sun/Moon nada mudou. Temos aqui claramente uma orientação pensada e voluntária: Pokémon deve ser fácil.

Se o gameplay limita-se a uma formalidade, que elemento poderá eventualmente cativar o nosso interesse? Para este problema como para quase todos, a solução poderá estar na narrativa. Querer saber o que acontece a seguir e sentir-se emocionalmente investido na história é algo que pode desviar a nossa atenção da pobreza dos obstáculos que condicionam a nossa progressão, especialmente num RPG. Pokémon Sun/Moon cumpre nesse aspecto? Se uma sessão de Baby TV com louro trançado lhe parecer uma perspectiva apetecível… Talvez, talvez…

O Universo de Pokémon nunca foi muito para além da criatividade do seu conceito. Sair de casa e enfrentar um desafio definido logo de entrada sem grandes peripécias para nos desviar do caminho traçado. Um mundo onde deixar a sua mãe solteira para batalhar contra desconhecidos e os seus animais selvagens não conflita com a agenda escolar é algo que só pode ser entendido como fantasia ou precariedade extrema. Essa fórmula base repete-se em todos os episódios da série sem grande justificação. É algo que podemos e deve ser criticado mas é válido para quase todos os jogos da saga. O Problema mesmo é que numa apreciação particular, Pokemon Sun/Moon supera os níveis soporíficos do seu predecessor através de um world building marshamallow onde nada é grave e nada ofende. A candura do conjunto é particularmente enjoativa e o universo está estruturado como uma espécie de manual de autoajuda onde todos os PNCs são desculpas para bajular o ego do nosso avatar preso ao estoicismo made in Nintendo. Para um jogo que coloca uma tónica significativa nas cut scenes e conversas diversas, concluímos rapidamente que a melhor opção é martelar o botão com o polegar da nossa indiferença.

Sou mesmo bom

Talvez sejam sinais dos tempos. Se o optimismo e os valores da amizade são os ingredientes imprescindíveis de qualquer produção nipónica, os primeiros Pokémon sabiam formular um universo relativamente hostil pontuado pelos breves sarcasmos dos PNJs mais irrelevantes. Um mundo onde a competição nem sempre rima com fair play e onde os objetos da mesma sofrem as consequências dessa realidade (Team Rocket, Mewtwo…). O guião de Sun e Moon respeita os critérios contemporâneos das narrativas infantis em que os valores se querem tão esterilizadas como os biberões. A Questão é entender porque raio um tipo de 30 anos quis um biberão e porque insistimos enquanto crítica em ignorar os longos momentos de tédio provocados pelo nosso desfasamento com a oferta.

O meu último artigo de opinião salienta a importância das opções de qualidade para o mercado infantil. Não poderia de maneira alguma criticar essa pretensão por parte da Nintendo. Parece-me evidente que algo diferente, algo mais “arrojado” pudesse ter sido tentado… Yo-Kai Watch comprova isso mesmo. O problema essencial a meu ver é que a gestão crítica da franquia é formulada por um núcleo de imperturbáveis fãs que consideram a campanha solo como uma pequena parte da sua experiência. Teimamos em colocar o ajuizamento destes jogos a pessoas com um gosto muito específico deixando as guiar o público através de uma retórica quase panfletária. Não poderei ter sido o único desapontado por mais uma promessa quebrada ou então talvez seja o último ingénuo.

Pokemon tenta disfarçar com pequenos elementos nostálgicos o seu verdadeiro público: A geração de miúdos que ainda tem a saga por descobrir. Não há nada de errado nisso e só me resta aceitar a minha inadequação… Até chegar a versão Switch. Claro.