Muito mais do que simples cromossomas

Há uma regularidade familiar na série Pokémon. O lançamento de novas gerações destas criaturas de bolso acompanha cada nova consola portátil da Nintendo desde o clássico Game Boy. Contamos sempre com a sua chegada como um tio que vem do estrangeiro e que nos traz novidades do que se passa nesse mundo misterioso que é o “lá por fora”. Só que esta novidade é usualmente limitada às largas dezenas de novos Pokémon que nos são trazidos a cada nova geração. Mas há algo de tão diferente neste tio que nos visita desta vez: não é apenas a roupa nova que tem vestido ou os souvenirs que enchem a sua bagagem que o diferem de outras visitas. Há uma aura de reinvenção que salta logo à vista assim que ele cruza a nossa porta de entrada.

As milhares de horas que dediquei à série nestes 14 anos, que me separam da primeira vez que joguei ao Pokémon Blue, permitem-me conhecer profundamente todos os títulos da série principal de Pokémon. E a cada nova geração a sensação que ficava (pelo meio do entusiasmo trazido por cada novo jogo) é que a Game Freak se limitava a fazer reskins do próprio jogo, ou em extremo, updates visuais para a geração de consolas da época. Mais do que tudo as alterações e pequenas evoluções da série foram essencialmente cosméticas. Isso e claro, o aumento exponencial do número de Pokémon à nossa disposição para agitar o coleccionador com Transtorno Obsessivo-Compulsivo mais ou menos diagnosticado. Não esquecer a frase que ecoa na nossa cabeça quando nos lembramos da série de animação: “Vou apanhá-los todos!”.

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Depois é virar ali no Café do Barbosa!

 

Ao primeiro impacto é fácil de dizer que a grande evolução deste X/Y é visual. A Game Freak finalmente cedeu na transposição para um visual inteiramente 3D que muitos pediam desde a NDS. Os sprites de combate dos Pokémons aos quais nos habituámos durante tantos anos foram finalmente substituídas por animações 3D que conferem uma grande carga épica e uma tensão que faltava em toda a série. Este ambiente com um clímax mais acentuado é em muito exponenciado por uma câmara dinâmica, cinemática até, que vai “percorrendo” ocasionalmente o campo de batalha para nos dar outros pontos de vista da postura dos Pokémons em disputa e/ou dos seus ataques.

Grande parte da parte exploratória do mapa, típico nesta série, está presente: muito frequentemente só é possível progredir para uma próxima cidade através da utilização de HMs, ou seja, habilidades ensinadas aos Pokémon que podem ser usadas fora de combate, que vão desde o Cut, que permite cortar árvores/arbustos que bloqueiam o nosso caminho, até ao Surf, que nos permite navegar as zonas de mar do mapa. Mas mais uma solução foi encontrada nesta Sexta Geração para resolver puzzles de acesso a novas zonas do mapa: a utilização de montadas. Para ultrapassar algumas zonas, seja uma zona montanhosa com muitas pedras a bloquear o nosso caminho, seja a neve semelhante. Aliás, “filho de peixe sabe nadar”, já dizia a sabedoria popular. Descobrimos no primeiro minuto do jogo que a mãe do nosso personagem é uma famosa cavaleira de Rhyhorns (dir-se-á rhyhorneira?). Portanto não é de estranhar a nossa habilidade inata para pegar nas rédeas de um Pokémon e cavalgá-lo até ao amanhecer. Só temos de ter cuidado com o porte do animal. Saltar para as cavalitas de um Pichu é capaz de magoar a criatura.

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Upa cavalinho! Upa cavalinho! Ups, bodezinho?

 

A Game Freak sempre teve o hábito de nos rotular à nossa existência mais básica com a pergunta que antecedia o início do jogo. “Are you a boy or a girl?” perguntam-nos todos os jogos de Pokémon até hoje. Não querendo entrar na discussão social e nas possíveis implicações psicológicas que esta simples pergunta pode ter na mente em desenvolvimento de um pré-adolescente, a realidade é que a capacidade de personalização do nosso avatar em jogo era virtualmente inexistente. À excepção de darmos nome ao nosso treinador, tínhamos que nos resignar ao personagem masculino/feminino que o jogo nos apresentava. Em Pokémon X & Y o nível de personalização vai um pouco mais longe, onde podemos escolher a priori três possibilidades de personagem dentro de cada género. À medida que o enredo se desenrola, vamos tendo acesso a lojas de roupas que permitem a personalização do nosso personagem, assim como a possibilidade de mudarmos o corte de cabelo. O que nos vai permitir, na componente multiplayer, a ter alguma distinção entre os diversos avatares que se cruzam online.

E é aqui, na componente multiplayer, que o grande salto evolutivo do jogo aconteceu. Continuando as mecânicas de lógicas online trazidas de Pokémon Black & White, X & Y, possivelmente com as capacidades técnicas permitidas pela 3DS, conseguiu melhorá-las e levá-las um pouco mais longe. Sendo a componente de trocas e batalhas com outros jogadores o grande centro das mecânicas de Pokémon, a afinação do sistema multijogador colocou o franchise noutro patamar. Todas as ligações, sejam troca ou batalha, ou mesmo a partilha de Vídeos de Combate, estão mais simplificadas, mais intuitivas, podendo estar 24/7 ligadas ao contrário da Geração anterior em que apenas nos podíamos cruzar com outros jogadores dentro de conecções efectuadas nos PokéCenters. É possível trocar e lutar com gente de todo o mundo, sem quaisquer restrições de região, o que acaba por trazer uma verdadeira globalização a uma série que já o exigia. É cada vez mais difícil encontrarmos localmente jogadores com quem possamos partilhar a experiência de Pokémon. E não dispor de um serviço online de qualidade era já extemporâneo para este filão dourado da Nintendo. Felizmente, tudo está devidamente acertado para resultar na perfeição.

Nota: não nos responsabilizamos pelas valentes tareias obtidas ao jogar contra jogadores asiáticos (japoneses e coreanos especialmente). Há situações em que o estereótipo é fielmente aplicado.

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Um sapo contra uma borboleta? Tarefa difícil?

 

Duas das mecânicas anunciadas para a “domesticação” dos Pokémon acabaram por, na prática, ser extremamente eficazes. Por um lado, o Pokémon Amie, que aproxima a tarefa de criar um Pokémon do sistema de Tamagotchi e de Nintendogs. Podemos fazer mini-jogos e alimentar os nossos Pokémon com doces, para aumentar a nossa ligação com eles, e com isso, a sua felicidade. O Super Training, vem responder a um pedido da comunidade de fãs que se via obrigada a grindar bagas para evoluir características específicas dos Pokémon. Tarefa essa que foi simplificada (e vá conferindo um nível de diversão que em momento algum qualquer tipo de grind pode trazer) através do recurso a mini-jogos.

Para diversificar a eventual monotonia dos combates aleatórios, foram criados dois novos tipos de combate que trazem um novo nível de estratégia ao jogo. As Batalhas de Horda opõem diversas criaturas em simultâneo ao nosso Pokémon, requerendo um nível táctico diferente e a dificuldade que a inferioridade numérica pode trazer. As Batalhas Aéreas opõem em exclusivo Pokémon voadores, impedindo-nos de trazer para a luta quaisquer outras criaturas que não disponham desse elemento. Elementos esses que ganharam mais uma diversidade: Fairy, que foi retroactivamente aplicada a alguns Pokémon, da primeira à quinta gerações. Isso e as já sobejamente faladas Mega-Evoluções, prometem trazer dinâmicas de combate e jogabilidade que vão certamente alterar a forma como os jogadores encaram a componente competitiva de jogar Pokémon.

E é curioso que é o primeiro jogo de toda a série em que, não só a Game freak teve uma relativa contenção na introdução de novas criaturas (a rondar os 60 novos Pokémon apenas) assim como é a primeira vez que nos cruzamos com criaturas de gerações anteriores antes do final do jogo.

Mas infelizmente, é na componente narrativa que X & Y falharam em dar um passo em frente. É sabido que a história dos diversos jogos, assim como dos manga e anime que lhe fazem parelha nunca foram exemplos de bom storytelling ou complexidade cultural. E sabendo também quem é o público-alvo do jogo, parece-me apenas que a Game Freak se esqueceu de um pequeno pormenor: a geração que começou a jogar a série, e que era pré-adolescente ou mesmo adolescente (como era o meu caso) tem hoje em dia perto de trinta anos, e espera uma complexidade narrativa ligeiramente maior do que a apresentada. Porque apesar do enredo deste X & Y trazer revivalismos de Red, Blue e Green, a fórmula utilizada de derrotar os 8 Líderes de Ginásios e posteriormente a Elite Four e o Campeão, parecem notoriamente insuficientes para uma grande franja dos jogadores, mesmo tendo em conta a relativa maturação que o backline narrativo da Team Flare (os inimigos do jogo) pode trazer.

 

O melhor: o verdadeiro salto evolutivo de toda a série, a afinação da componente online, a bem-conseguida transposição de cenários e criaturas para 3D.

O pior: a simplicidade e pequenês da narrativa e a utilização formulaica dos recursos de história.

Todas as expectativas em relação a esta Sexta Geração, trazidas progressivamente pelas notícias da Nintendo, deixavam antever uma verdadeira revolução na forma de apresentação da série. A evolução que a série obteve com este Pokémon X e o Pokémon Y é gigantesca quando comparada com os pequeninos saltos que foram sendo feitos nos últimos 15 anos. Há algo de tão Red e Blue neste jogo, mas simultaneamente soando ao que um jogo de Pokémon deveria ser em 2013. Fosse a percepção que a linha narrativa é importante para jogadores com essa exigência, independentemente da idade, e Pokémon poderia ter a pontuação perfeita. Até lá, procuram-se argumentistas?

Pokémon X e Pokémon Y são exlusivos 3DS