Que canseira!

Na minha descrição de autor no Rubber optei pela bazófia adolescente de me retratar através das minhas vergonhas conquistas preferidas em alguns videojogos bem conhecidos. Afinal, ninguém quer saber da minha restante – por incrível que pareça, considerável – vida pessoal ou trivialidades psíquicas que me definem. Qual não foi o meu espanto quando, chegado a 2021, homem feito, me apercebi que atingira a muy pubescente marca de 670 horas com um único jogo.

Se jogam Nintendo Switch poderão já ter reparado numa lista que surge quando acedem ao vosso perfil de jogo, em que vos é apresentado quantas horas passaram com cada jogo na consola. Acontece que finalmente terminei todos os arcos narrativos de Fire Emblem: Three Houses, cerca de ano e meio depois de o ter jogado e analisado aqui e depois aqui.

Desculpa, Link.

Se ainda estão comigo poderão estar a questionar-se que tão de interessante existe em Three Houses para lá se passarem quase 700 horas. Acontece que finda uma primeira campanha – qualquer que seja a casa e eventual ramificação narrativa desta que se escolha lá pelo meio – apenas algumas nuances da história nos são reveladas. Ora, o jogo, que nos coloca na pele de um professor na Academia dos Oficiais do Mosteiro Garreg Mach, permite-nos escolher uma de três casas, cada uma com seus alunos e aventuras. Junte-se a estas uma possível segunda metade do jogo sem estarmos alinhados com nenhuma casa – antes com a Igreja de Seiros – e um capítulo DLC avulso em que acompanhamos uma quarta casa e esperam-nos um total de 4,5 playthroughs pela obra da Intelligent Systems.

Levei 105 horas na primeira campanha (Blue Lions), 120 na segunda (Black Eagles), 161 na terceira (Golden Deer), 142 na quarta (Igreja de Seiros) e 8 no DLC (Ashen Wolves). Se a matemática é o vosso forte – claramente não foi para os meus alunos, que só aprenderam a manejar armas, usar magia, armaduras e andar/voar a cavalo – concluirão que o meu save tem pouco menos de 540 horas.

Mas em Fire Emblem, esse número é tão enganador.

Estas nunca mais vou recuperar.

Aquando das minhas análises, lamentei que o nível de dificuldade máximo existente não fosse grande desafio. Lançado em Julho de 2019, Three Houses teve direito ao Maddenning Mode em Setembro. Agora sim, uma das minhas franquias favoritas tinha finalmente aquele chapadão na tromba que tanto lhe admiro. Se ainda não chegaram lá, essas mais de cem horas de diferença entre o meu save e o relógio da consola encaixam no número absurdo de vezes que tive de reiniciar o jogo, porque algo correu mal.

Shiu, não me julguem…

Só que não estou a falar de Game Overs, tirando dois ou três. Embora defensor acérrimo do Classic Mode em que personagem morto é personagem perdido, não consigo ter estômago para perder nenhum. Ou seja, pese tenha até 13 Divine Pulses (para voltar atrás nas decisões tomadas sem recomeçar um mapa) por mapa, tantas vezes estes não foram suficientes para me impedir de recomeçar. Para piorar as coisas, nunca escolhi 10-12 personagens para evoluir confortavelmente à medida que a história progredia, antes treinei religiosamente todas as 40 personagens de forma equilibrada, o que limitou o seu crescimento máximo e me causou dificuldades acrescidas, especialmente nos primeiros e últimos capítulos de cada arco narrativo.

Antes que pensem que tudo isto é igual de arco para arco, há pelo menos um óptimo incentivo mecânico para jogar uma segunda campanha de Three Houses.

RECOMEÇAR, ROGUELITE STYLE

Se eu sou dos poucos fãs de longa data de Fire Emblem que tanto ama um título do Game Boy Advance, um Path of Radiance da Game Cube ou um Fates da 3DS, isso acontece porque respeito a intenção evolutiva e inovadora da série, embora nem sempre considere que todos os caminhos seguidos são os melhores. Mas um sinal positivo que deve gerar consenso é a honestidade de um estúdio que, narrativamente, cria uma experiência que pede meia dúzia de campanhas com demasiadas semelhanças (já lá vamos) num mesmo jogo (e não separado em 3, como FE Fates) mas cria um New Game+ para alterar significativamente a experiência de jogar, pelo menos numa segunda tentativa.

O conceito não é novo, mas continua actual. A primeira vez que o joguei foi em Final Fantasy X-2, mas versões subsequentes viram aplicabilidade em Batman: Arkham Knight, Persona 5, Nier: Automata, The Witcher 3 ou Horizon: Zero Down. Cai que nem uma luva em Fire Emblem: Three Houses, pois numa primeira campanha é demasiado difícil recrutar todos os personagens ou tornar sequer viáveis os mais fracos de todos, nas dificuldades mais altas. Se na minha primeira campanha dividi aleatoriamente os domingos do calendário de jogo entre atividades de exploração, batalha ou seminário, a necessidade de acumular Renown – uma espécie de divisa que nos permite desbloquear níveis, experiência ou habilidades desbloqueadas para cada personagem em campanhas anteriores – fez com que as minhas rotinas fossem sempre iguais: primeiro domingo de cada mês explorar Garreg Mach, restantes domingos fazer batalhas e side quests, as únicas tarefas de onde poderia acumular Renown.

2ª, 3ª, 4ª, 5ª , 6ª, Sábado…Domingo! Vai a malta passear…

Adequado a jogos que não nos deixam experienciar todo o conteúdo numa única campanha, o New Game+ de Three Houses abre-nos finalmente as portas não só a recrutar todos os personagens (que não os protagonistas de outras casas e mais um punhado deles exclusivos a certos arcos narrativos) mas a desafiar os arquétipos de RPG para o qual foram desenhados. Querem fazer do vosso Mage um Armored Knight para lhe dar mais uns pontos de defesa, ou só porque sim? Força. Querem um super-personagem mestre em todas as armas e habilidades? Força. No meu caso, personagens como Ashe, um frágil arqueiro dos Blue Lions, deu um jeitoso Armored Knight em boa parte do jogo. Ou Catherine, uma das espadachins que recrutamos num estágio mais avançado e que tem pouca versatilidade, com algum investimento tornou-se numa Wyvern Lord.

Importa referir que, como tive acesso ao DLC, tinha disponíveis batalhas com inimigos mais fortes e que me davam mais fundos de guerra do que o normal. Isto fez com que a maior experiência e recursos disponíveis suavizassem a dificuldade Madenning para níveis que, pese não deixarem de ser desafiantes, não me deram (demasiado) cabo dos nervos.

Apesar de alguns frankensteinismos por mim encetados, as personalidades de cada personagem nunca lhes tiram os traços distintivos que me fazem com que seja tão difícil deixá-los morrer. Tirei bastante prazer de, aquando de oferecer presentes ou saber o que lhes dizer em aulas ou pausas para o chá, chegar às respostas adequadas à personalidade e interesses de cada um, sem precisar de andar a consultar quais as correctas como na primeira campanha.

Vai pela sombra, Hilda…

Esta ligação emocional ao elenco de Three Houses levou-me ainda a reunir avidamente todos os diálogos secundários entre personagens que consegui. Porque alguns diálogos são exclusivos de certas campanhas, outros envolvem DLC, e todos requerem algum planeamento de utilização equilibrada dos vários personagens para que os níveis de afinidade entre eles subam, não consegui 100% dos diálogos ao fim de quatro campanhas. Se só em Fire Emblem Fates alguma vez consegui ter todo este conteúdo desbloqueado entre todos os títulos da franquia que joguei, só agora em Three Houses tive pena de não o conseguir. A qualidade dos diálogos é a melhor que já vi na franquia: se antes de FE Awakening se resumiam a “camarada, não saias do pé de mim na próxima batalha” ou “não me perdoaria se te magoasses enquanto lutamos juntos“, entre Awakening e Fates se focam praticamente apenas nos interesses secundários de cada personagem, em Three Houses, esses diálogos dão-nos algo mais que todo o espectro de personalidade do elenco. O que me leva ao próximo ponto.

TANTA NARRATIVA, MAS TÃO LONGE

Nunca na história de um Fire Emblem os diálogos entre personagens se tornaram tão essenciais para compreender partes da narrativa global ou do world building como em Fódlan. Com Three Houses, a narrativa é movida a personagens, menos mística e recheada de dragões do que títulos anteriores, assentando sobre a trama política e emocional. É precisamente ao entendermos o que a personagem X esteve a fazer durante o ano Y que se tornam óbvios os maiores plot twists do jogo.

Longe estão os arquétipos unidimensionais de FE Fates, em que cada personagem era conhecida apenas pela sua tara pessoal, explorada até ao tutano. Admito que à primeira vista, o mesmo parece acontecer em Three Houses, mas à medida que estas relações se desenvolvem as motivações e personalidade de cada elemento tornam-se mais visíveis. Como durante metade do jogo os nossos alunos são maioritariamente menores de idade, os diálogos mais avançados – mesmo quando estes já são adultos – apenas sugerem linhas românticas mas nunca as concluem, salvo nos créditos em que descobrimos que duas personagens casaram, ou quando o personagem principal escolhe uma das outras personagens para lhe fazer o pedido.

Hot for teacher?

O foco está, por isso, em eles partilharem uns com os outros as suas memórias, que estão muitas vezes ligadas a elementos chave da narrativa global. Este pormenor é em simultâneo uma das maiores virtudes e defeitos do jogo: se ter elementos narrativos espalhados pelo combate, personagens, missões e momentos mais introspectivos é especialmente imersivo, Three Houses deixa demasiadas pontas soltas entre os seus arcos principais. E por isso me senti impelido a fazer quatro campanhas, para ver tudo o que o jogo tinha para oferecer.

É pena que precisasse de tantas horas para conseguir finalmente ver a big picture. A primeira metade de cada campanha, pese podermos escolher uma de três casas diferentes, é feita essencialmente das mesmas missões e inimigos, percepcionados de três diferentes formas, muito próximas umas das outras (até porque alguns dos personagens que não escolhemos frequentam o mesmo espaço que nós e podemos interagir com eles). Chegada a segunda metade, as campanhas têm muito mais diferenças entre si, mas ainda fazemos muitas missões nos mesmos mapas vistas de perspectivas só ligeiramente diferentes. Embora cada história leve o nosso protagonista a acompanhar o líder de cada casa (salvo quando nos aliamos à Igreja de Seiros, a mais pobre das campanhas), para o final dei por mim a pensar que grande parte dos diferentes enredos poderiam co-existir sem recorrer a realidades/finais alternativos – simplesmente estava a vê-los acontecer em sítios e a pessoas diferentes. O que os diferentes caminhos nos dão de partilhado com a mesma realidade são importantes pedaços do passado, essenciais para entender as motivações actuais de heróis, vilões e antagonistas.

Somadas as 670 horas, Three Houses foi um poço quase sem fundo de conforto e familiaridade, especialmente num ano tão sui generis como 2020. Tantas vezes não peguei noutro jogo porque naquele dia não me apetecia pensar, antes fazer mais um grind. Como um sapato velho, o conforto por ele proporcionado foi maioritariamente doce, ocasionalmente doentio. Qualquer um de vocês conseguiria acelerar pela história mais depressa que eu – só que não quis comprometer a forma como quis jogar. Com tanta coisa boa, só consigo imaginar quão melhor poderia ter sido tivesse mapas com objectivos mais variados (side quests foram uma excepção a esta regra) e um ritmo mais condensado. Tudo de bom e menos bom estava lá por desgínio dos criadores.

Agora, posso finalmente purgar-me da Igreja de Seiros e relegar este para a prateleira onde merece estar, com o devido destaque.