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Há histórias, esquemas narrativos e enredos que já ouvimos / lemos / jogamos, com os quais já nos cruzamos mil e uma vezes, seja no KTOR, n’ As Mil e Uma Noites, na Eneida ou na Odisseia, até na Bíblia… Em alguns casos, todos estes substratos partilham ideias, conceitos e tramas semelhantes, situem-se eles no Egipto, em Skyrim, Runeterra ou “in a galaxy far far away”. Há quem diga até que os gregos já contaram todas as histórias que havia para contar e que tudo o que se tem vindo a fazer nos últimos dois mil duzentos e quarenta e nove anos um mês e vinte e um dias é um recontar e actualizar de narrativas que estão indelevelmente inscritas, mais ainda, que ajudaram a plasmar o ADN cultural da humanidade.

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O facto de eu, paradoxalmente, considerar esta afirmação simultaneamente correcta e incorrecta levar-nos-ia para portos que nos deixariam demasiado longe dos intentos deste texto. Assim sendo, eurocentrismos ou “ocidentalocentrismos” e deambulações acerca da origem da cultura e da tradição cultural à parte, a razão que me levou a optar por esta introdução foi o sentimento de déjà vu com que a opção narrativa de Crowntakers me deixou. Em abono da verdade, este jogo não perde tempo com preâmbulos e insinuações, e a história prece ter demorado dois minutos a escrever, se é que alguém se deu ao trabalho. O facto de terem avançado pelo modelo “ai e tal é o rei que te está a falar, és meu descendente e eu acordei-te telepaticamente para te dizer que me venhas safar o couro, apesar de nunca te ter ligado a vida toda e teres crescido numa quinta a plantar nabos” irrita-me um bocadinho. Onde é que já vimos isto antes? Eu, que raramente me lembro do que sonho e que tenho um sono à prova de tremor de terra (sim, já fiz a experiência em 2009), provavelmente continuaria a fazer zzzzzzz depois do bocejo inicial… Mas não o nosso Herói – porque nem se preocuparam em dar-lhe um nome – o nosso Herói, um auto-intitulado Zé Ninguém, sai de casa a correr para ir salvar o rei, aprisionado na masmorra do seu próprio castelo… Ainda bem que o faz, confesso, senão a experiência peculiar de Crowntakers estar-nos-ia vedada, o que seria uma perda para nós que gostamos destas coisas.Crowntakers 016

Agora que já ventilei a minha frustração pela sensaboria da história, podemos avançar para as coisas giras.

Crowntakers, indie com a chancela da Bulwark Studios, é um jogo singular, não é necessariamente original, mas tem carisma suficiente para nos fazer voltar ao início e recomeçar – acreditem, isso acontece vezes de sobra. No fundo, é um jogo de tabuleiro convertido em vídeo jogo rpg 2D por turnos, onde não faltam os familiares hexágonos, com suficientes elementos de estratégia para nos pôr a discutir tácticas e formas de construir o Herói e os seus companheiros de aventura com os amigos.

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Este título surpreende pela beleza dos cenários agradavelmente “cartoonescos”, pela novidade que só um gerador aleatório de níveis consegue dar e pela jogabilidade que requer muitos recomeços para que se posso aprender. É de salientar ainda que o tempo dentro do jogo influencia a força dos nossos adversários no futuro. Quanto mais demorarmos a avançar pelo mapa, mais vamos sofrer depois. Não há um tutorial, aprende-se jogando e isso comporta um agradável sentimento de nostalgia. Em Crowntakers não somos levados pela mão, somos atirados para o mundo e temos que nos desenvencilhar de tudo o que o mundo atira contra nós, sejam lobos, ladrões a guarda real ou o senhor no passo terceiro que se recusa a levar dano infligido por espadas. Para apimentar a situação, o velho esquema de salvar o jogo para o caso de se morrer não funciona. Podemos salvar o jogo para o continuar mais tarde, mas a boa vida acaba por aí. Crowntakers tem dois modos: fácil (mentira 1) e normal (mentira 2). O modo fácil (mentira 1) é, na verdade, difícil, mas, a nosso favor, temos o facto de a nossa experiência e níveis se manterem quando voltamos ao início (o que acontece cada vez que morremos). O modo normal (mentira 2) em termos de jogabilidade é igual ao modo fácil (mentira 1), portanto difícil, mas, quando se morre, a experiência e os níveis vão à vida, forçando-nos a começar da estaca zero.

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Numa escala de 01 para “Os três porquinhos”, o quão tramado estás tu?

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Sorte.

O meu conselho é que treinem muito na mentira 1 antes de se aventurarem na mentira 2, pois, por vezes, acabamos a jogar contra o nosso “eu passado” que tomou as decisões erradas à guisa de fantasma dos níveis passados e simplesmente há situações em que, olhando para as armas, armaduras e poções, não temos como não morrer.

Crowntakers é um jogo divertido e com o potencial para viciar, sobretudo se forem daqueles que não gostam de deixar um quebra-cabeças por resolver. Se é esse o caso, os meus sentimentos e juntem-se ao clube.