Post Scriptum #3

Chrono Cross (3)
A história da minha paixão pelos JRPGs e por aquele que é o meu jogo favorito da PlayStation está ligado a três amigos distintos, que cada um à sua maneira, contribuiu para essa minha”peculiaridade”.

Se eu dissesse que gostei de JRPGs desde a primeira vez que toquei num estaria a mentir. Penso que deveria estar em 1992 quando um vizinho me emprestou um cartucho amarelo para a minha Family Game. Jogo esse que não me lembro bem qual seria mas que possivelmente (e se a minha memória não me engana) poderia ser o Dragon Warrior, mas que nem o meu vizinho achou piada, nem eu próprio consegui perceber o encanto. O que se percebe dada a minha idade e a vertente menos “dinâmica” do jogo. E ir trocar um jogo de uma Famiclone comprado a uma loja de vão-de-escada porque não gostámos do jogo era coisa que ninguém fazia. Mesmo que a capa do cartucho parecesse promissora.

Chrono Trigger: o meu ponto de viragem

Só cinco anos depois, em 1997, é que um outro vizinho me encontra e diz: “tens de a jogar isto!”. Mas disse-o de uma forma assustadora, com os olhos vazios, desesperados, como se tivesse de passar uma informação urgente a alguém sob risco de vida. E lá fui até casa dele para começar a jogar aquele que foi a minha porta de entrada nos JRPGs, o magistral Chrono Trigger. Havia algo de mágico no enredo, no elenco e na jogabilidade. É normal que eu próprio, à época já adolescente, tivesse outra abertura para o género que na infância não tinha, e que acabasse por dar uma oportunidade a Chrono Trigger que, em miúdo, não dei ao jogo que o outro vizinho me tinha emprestado. Também é verdade que já jogava noutro ritmo, e não me ficava pela extrema necessidade de jogar platformers, shoot’em ups e fighting games como fiz desde 1989, e o facto de ter entrado na adolescência com os RTS e as aventuras-gráficas como género favorito permitiram-me abrir os braços à genial obra da Squaresoft. Depois disso tive mesmo de consumir uma série de JRPGs que acabaram por ter outros pontos altos já na geração PlayStation, mais especificamente FFVII e FFVIII, assim como SaGa Frontier 2 e Vagrant Story.

Os anos passaram-se e com eles vieram muitos JRPGs do final dos anos 1980 e início dos 1990 que eram para mim desconhecidos e que não tinham chegado ao Ocidente, mas graças ao crescendo da internet e das ROMs que eram partilhadas acabei por conseguir “por o catálogo em dia”. Mas seria apenas em 2001, um ano depois do lançamento da PS2, que um amigo meu que tinha vivido em Macau até à passagem administrativa para o Governo Chinês, me mostrou a sequela (para mim, à época, desconhecida) de Chrono Trigger: Chrono Cross, para a PS1.

Chrono Cross: a jóia escondida da PlayStation

Chrono Cross (1)

Dizer que o catálogo da primeira PlayStation é fascinante é um lugar comum. Dentro de tantos géneros distintos, é possível encontrar uma série de jogos que marcaram a história dos videojogos, e que ainda hoje têm o seu cunho evolutivo no mercado. Quando a Alexa nos sugeriu esta rubrica, o Post Scriptum, eu sabia que a minha primeira intervenção teria de ser o jogo que de certeza – até pelas impossibilidades de lançamento em PAL (à época) impediram que muita gente que ainda hoje glorifica Chrono Trigger – soubesse e jogasse a sua sequela. E acreditem em mim, apesar de muito mais obscuro e menos disseminado que o jogo original, Chrono Cross consegue estar a par do nível de qualidade de Trigger.

O enredo de Chrono Cross não é fácil de acompanhar, especialmente porque leva a temática das linhas temporais e das dimensões paralelas um passo mais à frente. O protagonista, Serge, defronta-se com uma realidade paralela impossível em que ele morreu em criança, e em que toda a gente que ele conheceu continuou com as suas vidas, sem ele. E resta-lhe (e a nós) descobrir a verdade por detrás dos estranhos lapsos temporais.

Chrono Cross (4)

Todo o enredo decorre entre estes dois mundos paralelos, aquele em que Serge morreu e aquele em que ainda está vivo, e saltamos entre ambos para progredir a história. É assim que recrutamos personagens, que resolvemos alguns obstáculos e que permitimos à história avançar. E um personagem que é nosso aliado numa dimensão, pode ser um inimigo visceral em outra. E é o balanceamento entre a exímia escrita de Chrono Cross e este malabarismo temporal que qualquer whovian reconhece e sente como parte da mobília, que reside a gigantesca qualidade deste jogo tão subvalorizado e decerto menos jogado do que deveria.

Com um total de 45 personagens possíveis de termos como aliados e jogáveis, Chrono Cross obriga-nos a jogar o jogo mais do que uma vez. Porque em muitas situações as escolhas que tomamos obrigam-nos a aliar-nos a um personagem e a recrutá-lo, impedindo, por oposição, que outro personagem se junte a nós. As acções e decisões que tomamos têm verdadeiras repercursões na forma como jogamos, na forma como os dois mundos se alteram e inclusivamente na forma como terminaremos o jogo. Finais múltiplos não são inovação (e já não o eram em 2000) mas Chrono Cross é narrativamente tão complexo que é possível termos doze finais diferentes. Sei-o por informações de outros fãs, que para ser honesto até hoje só consegui obter três conclusões diferentes. E os finais são realmente distintos, e não há aqui truques cromáticos mal-amanhados à la Mass Effect 3.

Sistema inovadores e as quebras das tradições

Apesar de tridimensional, Chrono Cross retém as características mecânicas do seu antecessor. Os random encounters são substituídos por inimigos visíveis nos mapas, e apenas com o nosso contacto é que é despoletado o combate. Mas houve uma série de experiências mecânicas que fizeram dele um jogo irrepetível até aos dias de hoje, e ainda vejo com um tremendo respeito todas as quebras com as convenções dos JRPGs clássicos que Masato Kato e a sua equipa da Square imprimiram neste Chrono Cross.

Chrono Cross (1)

Começamos pela importância dos elementos e a a aplicação deles enquanto mecânica de combate. Cada elemento tem uma cor associada (como habitual), com forças e fraquezas perante outros elementos. Mas há um sistema cromática de área de efeito em todo o combate que exponencia ou diminui a sua eficácia. Por exemplo, se três habilidades vermelhas foram aplicadas sucessivamente, essa informação fica activa num contador de combate o que vai potenciar um subsequente quarto ataque também vermelho. A táctica e a gestão das habilidades e da nossa party que este sistema trouxe, adicionou uma densidade única aos combates por turnos nos JRPGs. Ainda que nos primeiros vinte minutos de jogo eu achasse que todas as inovações eram pouco explícitas, quando o sistema passou a fazer total sentido deixou-me uma garantia até aos dias de hoje de ser dos sistemas de combate mais refrescantes que já joguei. Igualado, talvez, pelo de Bravely Default.

O grind de XP que é uma das pedras fundamentais dos JRPGs foi também totalmente obliterada. No seu lugar ficou um sistema que faz um upgrade a todos os personagens sempre que um boss é derrotado, permitindo que o nosso foco permaneça no mais importante, o excelente e complexo enredo, e não na monotonia repetitiva de grindar níveis.

Harle

Chrono Cross é para mim o melhor jogo que joguei na PlayStation e o meu JRPG favorito de sempre. Com todas as quebras das tradições dos JRPGs, um enredo complexo e bem desenvolvido (mas que requer muita atenção porque é muito fácil perdermos o fio à meada), e com ramificações que nos impelem a rejogar o jogo. Um elenco de 45 personagens jogáveis com qualidade, com história próprias e identidades memoráveis, e que não podiam estar mais distantes dos personagens genéricos de outros clichés dos JRPGs. Enfim, um jogo que eu ainda hoje não compreendo como é que tantos fãs de JRPGs, ou mesmo aqueles que dizem sê-lo e que jogaram apenas FFVII, não conhecem. Chrono Cross deve ser jogado, rejogado e aproveitado em toda a sua complexidade, maravilha e risco. Não sei foi pelo período conturbado que a Square viveu aquando do lançamento deste jogo, mas parece-me daqueles casos em que as dificuldades da empresa acabaram por toldar o sucesso e a massificação deste que é uma das suas obras-primas.

Pode ser que o tempo venha a dar-lhe o valor que verdadeiramente merece.