A epidemologia do herpes simplex rondará os 90% segundo Wald e Corey1, o que significa que grande parte da população mundial possui o vírus HSV com ou sem manifestações físicas. Paralelamente, a quase totalidade dos videojogos, do blockbuster mais hollywoodesco ao indie mais pequeno mas de sucesso moderado a elevado possui DLCs, essa prática comercialona que tanto ou tão pouco foi rebatida que nos dias de hoje é perfeitamente ponto assente, e que pouco ou nenhum celeuma levanta.

No meio de tudo isto tínhamos a Nintendo. É verdade que há alguns anos que a próprio Big N possuía DLCs para os seus jogos, sendo alguns dos que comprei para Fire Emblem Awakenings alguns desses casos. Mas, de forma alguma a empresa algum dia utilizou esta forma de extra-financiamento para elementos integrantes do jogo, e quase sempre remetia-se para side quests, novos personagens ou itens cosméticos. No meio de uma verdadeira epidemia silenciosa de herpes, em que alguns de nós até devemos ser portadores de HSV, a Nintendo era o rapaz ou a rapariga do bairro em quem confiávamos totalmente como aquela percentagem que felizmente (e orgulhosamente) é imune ou não-portadora do herpes, e quanto muito éramos nós que a/o contagiávamos a meio de um surto de herpes labial durante um linguado atrás do pavilhão da escola.

Se olharmos com atenção, debaixo da sobre-exposição da iluminação da cena, Link esconde o seu inestético herpes labial.

A notícia chegada a público hoje de que The Legend of Zelda: Breath of the Wild irá conter DLCs apanhou pouca gente de surpresa, e as que apanhou deveu-se acima de tudo ao timing da notícia. Itens cosméticos para serem usados dentro do jogo é altamente compreensível, e opcional enquanto experiência de jogo, e historicamente observamos que a Nintendo sempre teve uma postura de respeito perante o consumidor em contra-corrente com a vertente mercantilista de todo o meio: cada uma das suas produções era una e indivisível, o que se tornava apenas mais um elemento da certeza do Selo de Qualidade da Nintendo, aquilo que a distingue e a superiorizava na ética comercial perante qualquer concorrente. Um The Legend of Zelda ou um Super Mario são jogos coesos, quase intocáveis, e que proporcionam uma qualidade proporcional à gigantesca legião de fãs que possuem.

Ter um The Legend of Zelda que possui Hard Mode via DLC é a grande desilusão, o derradeiro sinal de contágio de uma companhia que se mantinha a par daqueles 10% da Humanidade que permanece livre do HSV, por imunidade ou outros factores. Muitos argumentarão que o Hard Mode não é uma característica essencial do jogo, mas eu aí terei de discordar. Modos de dificuldade não são, per se, conteúdo adicional, mas sim técnica e conceptualmente uma fina camada que a existir confere ao jogador a escolha do tipo de experiência que quer ter, ou uma recompensa, em grande parte dos casos, por termos terminado um jogo. Conteúdo adicional anunciado pré-dia 0 é um péssimo indicador de produção, e afirma a vontade comercial da administração da empresa de deliberadamente produzir um excerto de conteúdo que é excisado do produto para ser vendido separadamente.

Quando o mercado ainda falava a língua da paixão.

Vender o Hard Mode como parte integrante de um DLC parece-me apenas um terrível precedente para o futuro, para o conselho de administração que de dia-para-dia demonstra o quanto a paixão ingénua de Iwata faz falta como timoneiro de um barco que é querido por tantos milhões de pessoas. Mas o mundo em que vivemos reflecte isto mesmo, que não existe romantismo no mondo cane que é o mundo de negócios, e que, passando a tradução directa, não existe honra entre ladrões.

É aliás a mim, e a tantos outros milhões de servos cegos e idiotas da Nintendo que se deve toda a permissividade e desvirtuamento dos pontos que a separavam de todas as outras companhias, ao ver tantos “nintendistas” a defenderem todo e qualquer passo da Nintendo apenas por ser a Nintendo, e a justificá-lo com a maior arma que possuímos frente a uma empresa: o nosso poder de compra. Nesta mudança de paradigma, ou “cedência às contingências do mercado” como eu diria se fizesse trabalho de PR da Nintendo, pouco vai havendo que a separe de uma EA, uma Ubisoft ou uma Warner Bros. Pelo menos por agora ainda é quase certo que os jogos são lançados completos e afinados no dia de lançamento. Mas isso tudo pode mudar um dia, e aguardo com ansiedade, pipocas e herpes simplex que se activa quando o meu sistema imunitário está em baixo, pelo dia em que até a Nintendo terá 0-day DLCs de conteúdo integrante do próprio jogo, tipo níveis finais do Super Mario ou a dungeon de final de jogo de The Legend of Zelda.

A certeza que nos fica é que até a Nintendo tem o seu anciclovir de prevenção. Um sinal epidemológico dos dias de hoje.

1Human Herpesviruses: Biology, Therapy, and Immunoprophylaxis. Cambridge, 2007