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Quem nunca sonhou ser mais rápido, mais forte, e dessa forma pertencer àquela equipa profissional de desporto que tanto gosta, ou então, simplesmente por capricho. Todos a certa altura da vida pensamos nisto, mesmo que não diretamente. Mas e se tivessem a possibilidade de alterar uma ou várias partes do vosso corpo de forma a obter os tais atributos que desejavam, se fosse uma prática tão comum na sociedade como cirurgias plásticas; será que o fariam?

A série Deus Ex aborda este tema de forma bastante adulta e clara, colocando o jogador em 2027 (Human Revolution), numa era em que os melhoramentos humanos são algo natural entre a população, garantindo assim próteses robóticas dignas do Six Million Dollar Man. Se pensarmos bem é uma realidade que nos está prestes a atingir, basta olhar para os avanços tecnológicos que já permitem a conceção destas mesmas próteses biónicas, e claro, alterações mais bizarras como a de Neil Harbisson, o primeiro eyeborg… mas certamente não o último.


Cena de abertura com diálogos, música e cenas exemplares, causam uma sensação arrepiante e igualmente empolgante.

Embora tudo isto seja bonito no papel, existem milhares de outras implicações a ter em conta, implicações essas abordadas por Mankind Divided. No fim de Human Revolution, algo terrível acontece. É relatado que em todo o mundo várias pessoas com estes melhoramentos começaram a atacar e a matar pessoas em série, causando assim uma divisão entre a sociedade. Dois anos depois as cidades alteram-se – o controlo policial sob os “Augs” é gigantesco, criam-se zonas interditas a todos aqueles que possuem alguma espécie de alteração biónica, e claro, troca de olhares julgadores entre ambos os lados da mesma moeda.

Os principais temas do jogo são o racismo e desconfiança, sem nunca nos ser apresentado um verdadeiro vilão, algo fora do comum em jogos deste género. O questionar de todas as nossas decisões e ações, esse é o grande bem, e simultaneamente mal do jogo. Qual a direção correta? Será que me estão a mentir? É sem dúvida uma das melhores sensações que tive num título do género. A conceção de problemas reais, com os quais facilmente comparamos nos dias de hoje à questão dos imigrantes ou até dos burkinis, fornece uma seriedade e maturidade que há muito procurava. O enredo não é perfeito, saltando por vezes algumas peças do puzzle de forma repentina, perdendo assim o seu sentido e credibilidade, mas ainda assim, a capacidade e genialidade de nos inserir indiretamente num problema que abala o mundo atual é fantástico e extremamente bem executado.

Algo que ajuda a fundamentar esta mesma sensação é o mundo em nosso redor, repleto de momentos únicos e credíveis. Recordo me de fazer hack ao sistema de segurança de uma porta blindada, com o dono do estabelecimento ao lado. Após o meu sucesso, assisto à chamada das forças policiais, mas ao chegarem ao local apenas vêm o suposto dono/guarda-costas a entrar pela porta “arrombada” ligando-o ao crime e disparando sobre o mesmo. Estava escondido, invisível, literalmente, a assistir a tudo aquilo e a rir-me de toda a situação, mas ainda que tenha sido um divertimento pessoal, deu para perceber que a inteligência artificial no jogo estava implementada na perfeição. Usar a saída dos humanos em vez dos augmented no metro e ver um agente a interrogar-me e a pedir pelos meus documentos de identificação, é um dos vários momentos que acrescentam algo mais ao jogo, pormenores que à primeira vista não seriam necessários mas que adicionam tanto a Mankind Divided.


Na demo a munição e vida são infinitas, no jogo é limitada, extremamente limitada.

A verdade é que tudo isto é possível porque Adam Jensen é uma máquina, pun intended. Todos os atributos ao nosso dispor, com as mil e uma formas de ingressar para uma abordagem furtiva ou violenta dependendo do estilo de cada um, fundem-se com a cidade e o falso mundo aberto. Um dos muitos problemas em jogos de Stealth é o irreal leque de escolhas e direções a tomar para alcançar o objetivo pretendido, uma ilusão que se torna ainda mais evidente ao ver o claro caminho que os produtores querem que o jogador escolha, transformando as outras possibilidades em autênticos becos sem saída. Contudo, aqui têm o menu completo. Amontoar dois caixotes do lixo numa pequena grua para subir ao telhado de uma casa e assim tomar de assalto uma mansão, usar o sistema de ventilação e hackear as câmaras e armas do sistema de segurança, acionando o frindly fire para eliminar qualquer ameaça, correr pela porta da frente disparando contra tudo e todos, e muitas outras opções que só a imaginação de cada um poderá oferecer.

Recordam-se de ter falado que não existiam vilões, que as questões como o racismo são o verdadeiro problema, o verdadeiro infame? Bem, em parte é verdade, em parte menti. É claro que o jogo vai-nos apresentando os peões, cavalos, bispos e torres, e consequentemente, reis e rainhas de cada lado do tabuleiro, mas contrariamente a Human Revolution, não são obrigados a confrontá-los corpo a corpo. Mankind Divided apresenta-nos trocas de diálogos inteligentes entre Adam Jensen e as principais peças opositoras, deixando o único verdadeiro embate para o final, e mesmo esse pode ser defrontado à distância, usando todos os meios furtivos desbloqueados até então. Era um dos grandes erros do título anterior, um dos tais “becos sem saída” que desligavam a sensação de escolha. Aqui todos os avanços tecnológicos que evoluam durante a vossa campanha serão benéficos e ir-se-ão encaixar no caminho que seguiram, não haverá um momento em que sejam obrigados a mudar violentamente, forçando a adotarem um estilo que não o vosso. Ao nível de gameplay, é para mim, de longe, o melhor título lançado este ano.

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As composições de Michael McCann voltam a marcar um título de Deus Ex pela positiva, com sons de impacto governados por uma vibrante fusão trip hop e electrónica, concedendo assim a melodia perfeita para Prague e todo a sua distopia associada. Prague esta, vestida de tons amarelos, laranjas, cinzentos e pretos, uma palete de cores limitada mas surpreendentemente coesa. A diferença gráfica entre as versões de consola e computador é grande, bastante, mas sem um transtorno suficiente para se deixar de desfrutar numa PS4 ou Xbox One, mesmo com os súbitas quebras de framerate. Fora as faces apáticas durante os diálogos, todo o jogo e composto por inúmeros detalhes gráficos capaz de presentear os mais atentos – os mais desatentos assistem assim a um polimento refinado de todo o espaço em seu redor.


Mechanical Apartheid foi um termo que causou revolta e controversa dada a associação da palavra apartheid com a discriminação das pessoas de pele negra na África do Sul.

Não podia deixar de mencionar o desconforto que foi para mim assistir à revolta nas redes sociais para com o jogo antes do seu lançamento. Esqueçam os bónus de pré-reserva estilo Kickstarter que têm uma ligação mais forte com a editora que a própria produtora, falo da controvérsia em torno da expressão Mechanical Apartheid. Num período em que somos bombardeados com séries televisivas com temas fortes, capazes de pisar a linha e apontar o dedo, debatendo questões de politica, revoluções tecnológicas, racismo e ditadura, porquê as criticas a uma expressão? Custa ver que os jogos ainda são tidos como algo para crianças aos olhos da sociedade, quando muitas destas produções a merecerem muito mais destaque que o presente em livros, cinema e televisão, muitos eles quebrando recordes de vendas e visualizações. Sinceramente, se as equipas de produção (sobretudo as AAA) necessitarem de passar por tudo isto para apresentar algo com uma força de expressão tão grande como a de Mankind Divided, então que assim seja. O risco não podem ser apenas de produtoras de títulos indies a apresentar jogos como Papers, Please.

Deus Ex: Mankind Divided é por agora o melhor jogo que me foi apresentado em 2016, com um tema forte, atual e cru, de mãos dadas a um gameplay irrepreensível desfrutado numa cidade marcante. Embora a história tenha um impacto menor que Human Revolution, acaba por conceder um tom mais credível e coeso, melhorando todos os outros aspetos do jogo. Se gostam de ambientes cyberpunk e jogos de acção furtiva então este é um título obrigatório.

Caso não sejam, continua a ser obrigatório.