Se nalgum programa de quiz televisivo vos perguntarem qual foi a maior epidemia dos anos 1990 não se assustem com opções como HIV ou cólera, porque a resposta certa é na realidade uma pandemia cujo epicentro foi o Japão. E o seu nome era Dragon Ball.

Na última década do século passado a proximidade e o sentimento de idolatria que o mundo ocidental (e oriental também) desenvolveu por Akira Toriyama, famoso mangaka que tinha começado a criar o seu nome na indústria nipónica com a série Dr. Slump, mas que conduziu a uma massificação do manga com o seu Dragon Ball. É sabido que tivemos uma ligeira décalage de tempo da chegada do anime a Portugal, tendo de esperar pelos óbvios pórticos de entrada na Europa do género, a França e a Itália, Mas esse atraso não invalidou que em meados dos anos 1990 toda a gente andasse completamente doente por tudo o que conseguisse por as mãos que tivesse sido criado por Toriyama, fosse pertencente ao universo de Dragon Ball ou não.

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Nessa fase, pelos meandros rudimentares da internet começavam a surgir as informações de que Toriyama não era apenas um famoso mangaka, mas também um artista nesse meio tão querido e simultaneamente misterioso que eram os videojogos. E graças a este estado-de-graça do autor já nos últimos anos da década alguém me apresentou um jogo chamado Chrono Trigger, do qual eu nunca tinha ouvido falar. Mas para me “venderem” o jogo (e que acabaria por ter o o peso na história dos videojogos e também na minha experiência enquanto jogador), uma frase bastou:

– Olha que o jogo foi feito pelo Akira Toriyama.

Não vou entrar na discussão da autoria, da veracidade da expressão “feito por” quando aplicado a um sistema de produção que envolve largas dezenas de pessoas, mas a realidade é que a distintiva estética de Toriyama marcava profundamente Chrono Trigger, e esse foi o melhor argumento de conquista que alguém poderia ter, à época, para passar a ideia de que um jogo desconhecido valia a pena de ser experimentado.

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Só poucos anos depois, já na década passada, com um amigo macaense que trazia consigo numas férias em Portugal o Dragon Quest VI, é que percebi que Chrono Trigger poderia ser um dos melhores, mas não era de certeza a primeira aventura de Toriyama nos videojogos. E que apesar de ter ilustrado algumas sprites para alguns jogos de NES, foi mesmo com Dragon Quest (ou Dragon Warrior como também é conhecido) que Toriyama – o artista, começou a desenvolver um universo virtual baseado nas suas criações. É claro que dentro das limitações técnicas dos jogos até à era dos 32 bits, a verosimilhança entre o brilhante traço do mangaka e as suas representações nos sprites começaram a ser cada vez mais próximas do que nos habituámos a ler e a ver (em anime e manga) com a chegada das consolas de 128 bits.

Só alguns anos depois, e a cavalgar a verdadeira torrente de sucesso global da PlayStation 2 é que chegou aos escaparates das muitas lojas de videojogos que ainda existiam no nosso País, e Dragon Quest VIII demonstrava finalmente o brilhantismo que existia entre o traço de Toriyama e os mundos por si criados para a série da Square Enix.

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Precisamos de saltar 16 anos desde o seu lançamento oficial para que a Europa possa experimentar um dos melhores jogos da série, Dragon Quest VII: Fragments of the Forgotten Past, lançado há duas semanas para a 3DS.

Numa fase em que tantas vezes condeno de imediato os remakes por achar que são desnecessários e que pouco significam para além da óbvia ganância das empresas que possuem as PIs, esta nova versão de Dragon Quest VII não só homenageia o jogo original de forma exímia, como serve de proximidade a muitos jogadores que não tiveram oportunidade de o conhecer. Mas acima de tudo, pelo respeito artístico por Toriyama, o que esta nova versão de Dragon Quest VII para 3Ds faz é respeitar por inteiro a sua visão do mundo que criou, e estando ultrapassadas as barreiras tecnológicas que permitem aproximar o traço do mangaka às figuras e ambientes presentes no jogo, este remake torna-se perfeitamente obrigatório para os seus fãs.

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É sabido que o apogeu de Toriyama ficou lá atrás, antes da viragem do século, e que o seu nome já não é suficiente para vender um jogo. Outros nomes grandes da nona arte também assinaram a arte de videojogos, como Joe Madureira, que contribuiu/criou jogos como Gekido ou mesmo Darksiders. Mas Toriyama parece estar num patamar só seu, pelo contributo que teve para a globalização da cultura nipónica e a tremenda influência que o seu traço surtiu sobre todas as gerações posteriores.

Ainda no artigo sobre Seasons After Fall falava sobre o valor dos ilustradores (naquele caso anónimos) que elevaram o valor artístico do jogo. No caso de Dragon Quest VII o caso é ligeiramente diferente: é a linguagem única de um dos maiores autores de banda-desenhada de sempre que contribuem para criar um mundo coeso e visualmente único, reconhecível naquilo que é o seu legado.

E acredito que Dragon Quest VII: Fragments of the Forgotten Past, servirá também para aproximar muitos jogadores de uma enorme série tantas vezes ofuscadas pela sua “irmã” de editora, a série Final Fantasy. Mas com a imensa longevidade, complexidade de relacionamentos de personagens e a tremenda cultura visual de Toriyama, é difícil que Dragon Quest VII: Fragments of the Forgotten Past não faça parte do catálogo de quase todos os possuidores de 3DS. Parece que obrigatório nunca foi tão bem catalogado como nesta forma de elevar a criação artística de alguém tão importante para a arte como Akira Toriyama.