Sei de cor
Cada traço do teu rosto, do teu olhar
Cada sombra da tua voz e cada silêncio
Cada gesto que tu faças
Meu amor sei-te de cor
Não sei se o Paulo Gonzo alguma vez criou um clone ou sucessor espiritual de um videojogo, contudo sei que a letra de Sei-te de Cor encaixa que nem uma luva no trabalho que os holandeses da TRAGsoft nos apresentam. Coromon é uma carta de amor a Pokémon, claro. Mas é-o ao ponto de o projeto ter pernas para andar para além de um título one-off: os problemas que ainda tem são todos passíveis de resolver com patches, pelo que a base é bastante sólida e não me espantaria de ver uma sequela.
A grande pergunta para quem quer saber se deve jogar Coromon é: vale a pena investir em mais um clone de Pokémon? Eu digo que sim. Coromon reúne elementos da primeira à quinta geração de Pokémon, reaproxima o subgénero de captura de criaturas aos JRPGs mais tradicionais e dá-lhe até umas nuances de Zelda ou Golden Sun.
No que este título é mais familiar à série da Nintendo, uma simples aventura de um jovem adulto no seu primeiro emprego como investigador de batalha numa moderna empresa tecnológica torna-se numa quase-épica demanda sobrenatural e com extraterrestres. Escolhemos um de três Coromons para começar e treinamos até seis de cada vez, através de random encounters ou contra outros ‘investigadores’. Temos itens, diferentes tipos de Coromons e seus ataques, eles evoluem, podemos apanhar mais.
A verdadeira pérola da obra da TRAGsoft está no entanto na forma como várias mecânicas – umas mais inovadoras que outras – são integradas no jogo. Fãs de longa data de Pokémon sonham com uma continuidade ou pelo menos renovação de certas mecânicas: coisas como diferentes batalhas, estilos de evolução, áreas ou desafios que entram e saem dos jogos da Pokémon Company a um ritmo frustrante. Em Coromon, é nas diferenças para a fórmula original que o jogo nos começa a cativar. Existem extensas opções de personalização de dificuldade (não só no nível dos inimigos mas até na forma como consumimos itens ou os Coromons se regeneram), o sistema de aprimoramento das estatísticas é bem menos focado em grind, temos uma barra de Special Points para gastar nos ataques das criaturas em vez de cada ataque ter o seu limite de uso (e se essa barra se esvaziar, basta gastar um turno a enchê-la) e muitos outros pormenores que tornam a experiência diferente.
O objectivo, ainda assim, é recriar muito daquilo que Pokémon foi enquanto jogo 2D, do GameBoy à Nintendo DS. É aqui que entram os meus primeiros pontos de desconforto com o jogo. Com batalhas por turnos que não tenho forma de acelerar – quer por velocidade das animações, quer pela quantidade de batalhas que nos caem no colo – senti-me desgastado ao fim de algumas horas com o ritmo do jogo. Tinha sempre imensa vontade de explorar o rico mapa de Velua, com puzzles variados e áreas dinâmicas. As batalhas, que são o grande foco do jogo, ao invés do colecionismo (só existem 114 Coromons), pediam maior fluidez. Os Coromons, esses, têm também um só tipo, embora tantas vezes merecessem ter dois. Mais, só há Coromons de sete tipos diferentes, pese existirem 13 tipos de ataques.
Como escrevia ao início, tudo coisas relativamente acessíveis de resolver com alguns patches. É fantástico ver a inspiração da maioria das criaturas ser muito da geração original de Pokémon, em que adoráveis monstrinhos se tornam em possantes bestas de perdição. Coromon acaba muito com aquela coceira do “queria que houvessem mais Nidokings e menos Goodras”. Entusiasma-me ver este grupo de developers, tão conhecedores do género, a executar de forma muito competente ideias que, vamos ser honestos, já todos tivemos. O que me leva a tentar responder novamente à questão inicial: porquê jogar Coromon, em vez de um título da série principal de Pokémon?
Pokémon cunhou praticamente tudo o que se conhece e consome estes dias deste subgénero dos JRPGs. Se estivermos frustrados com o produto oficial, ou simplesmente quisermos algo diferente, além destes clones ou sucessores espirituais, temos rom hacks (edições profundas a jogos existentes, normalmente entre as gerações do GameBoy e da Nintendo DS) ou fan made games (normalmente feitos com RPG Maker), que podem ter Pokémon reais ou Fakemons. Uma coisa que a série original nunca perdeu foi o seu charme. De imediato somos seduzidos para os seus mundos e criaturas, que nos são familiares (mesmo quando há uma nova geração). Neste ponto, um sucessor espiritual tem um trabalho bem mais difícil de convencer público – até porque se quer vender-se legitimamente, tem de o fazer ou enfrentar os advogados da Nintendo. Não vou mentir: o charme de Coromon não é imediato e demorei a desapegar-me de certos confortos emocionais que Pokémon me dá. Se é que me desapeguei de todo.
Certo é que, mais importante do que a crítica do jogo até aqui – positiva mas cautelosa – a comunidade online tem mostrado bastante agrado. É aqui que acho que está o segredo para o continuado sucesso deste título, para já em Android e PC (versão que testei), mas em breve na Switch (onde me parece ser o seu habitat)